E as pessoas idosas?
A comunicação social dava esta semana conta de mais uma pessoa idosa que morreu sozinha na sua casa. Abandonada, no sentido literal do termo. Pela família que lhe restava, (se é que a tinha), e pelo Estado. Parece que nos últimos meses apenas recebia a visita esporádica de um parente afastado. Dias depois dos vizinhos deixarem de ouvir alguns ruídos, as autoridades foram chamadas e encontraram mais um corpo sem vida. Não sei se há estatísticas destas situações. Eventualmente haverá. Mas são cada vez mais os relatos que nos acordam para a absoluta indignidade em que muitas pessoas vivem os últimos tempos da sua existência.
Há muito que defendo uma alteração das políticas públicas de molde a evitar estas situações extremas, e mesmo outras que levam muitas pessoas idosas a quadros de profundo sofrimento. O que acontece é que há hoje um claro desfasamento entre a estrutura e funcionamento das famílias e das respostas sociais, na sua relação com o facto de as pessoas viverem hoje mais tempo, comparativamente com o que acontecia há quarenta ou cinquenta anos atrás.
Tendo como referência o nosso país, em 1972 a esperança média de vida, (homens/mulheres), era de 68,5 anos. Passado cerca de meio século, esse indicador, era, em 2019, de 81,1 anos. São quase treze anos de ganho, muito à custa de avanços sociais, científicos e culturais. Em particular nos cuidados de saúde, leia-se SNS; da melhoria a nível das condições habitacionais com os avanços que se verificaram em domínios como a salubridade e conforto das residências; do regime de pensões, que embora de valor reduzido para a maioria dessas pessoas, lhe permitiu a saída de obrigações laborais, muitas vezes com ganhos no quadro geral de saúde, pois não nos podemos esquecer que são os atuais idosos, em regra menos letrados, que exerceram atividade de maior desgaste físico. Mas também os progressos no plano da instrução, que, apesar de tudo, as faixas etárias mais avançadas, beneficiaram nas últimas décadas e que lhes permitiu aceder a mais informação com impactos diretos na sua qualidade de vida.
Mas se é certo que hoje se vive mais tempo, também é igualmente verdade que se vive mais tempo dependente de cuidados de terceiros. As sequelas de doenças coronárias ou neurológicas, por exemplo, são em geral causa direta dessa situação e por vezes se traduz naquilo que a imprensa nos vai dando conta, com “mais um idoso que morreu sozinho”.
Não acompanho a ideia de que a estrutura familiar desenvolveu um quadro de maior frieza relativamente aos mais idosos. O que aconteceu, é que a figura secular da “mulher cuidadora” a tempo inteiro, das crianças, dos doentes e dos idosos, desapareceu. Nuns casos, a justíssima possibilidade de poder ter uma carreira profissional, e noutros, o facto do salário do “homem ganha pão” ser insuficiente para manter um padrão de vida aceitável nas sociedades modernas, levou a uma revolução no funcionamento das famílias, em que aspetos como os papéis sociais de cada um dos seus membros, ou a própria tipologia desse sistema social, faz com que exista cada vez menos disponibilidade de tempo e de dinheiro para cuidar dos idosos dependentes. Ou ainda, e muitas vezes, espaço nas exíguas habitações. Relativamente à tipologia das famílias, em 1992 existiam em Portugal 203 654 famílias monoparentais (apenas um progenitor com um ou mais filhos), enquanto em 2020, eram mais do dobro: 470 654.
Essas e outras alterações levaram a uma procura de cuidados formais. O número de pessoas idosas em Lares, (detesto a nova designação de ERPI); em Unidades de Cuidados Continuados; em Centros de Dia ou em redes de SAD – Serviço de Apoio Domiciliário, disparou nos últimos anos. Não há espaço numa crónica deste tipo para aprofundar a questão. Chamo apenas a atenção para um novo conceito, que espero se traduza em medidas concretas e sobretudo avance para o nível de Direito Social, e que é o Ageing Place, um inglesismo que na prática aponta para a importância do envelhecimento no meio, na própria casa, na comunidade onde sempre se viveu.
Não existe atualmente em Portugal essa possibilidade para milhares de pessoas idosas. Para além da necessidade de alterações no quadro geral das políticas laborais, que, por exemplo, permitam aos filhos e familiares diretos dos idosos a mesma proteção que, legitimamente, têm para apoiar os seus próprios filhos menores em questões de saúde ou de educação, impõe-se uma alteração profunda no modelo de funcionamento das ditas respostas sociais, com particular destaque para o SAD. Esta é, quanto a mim, a resposta social do futuro e que permitiria cumprir os desígnios do referido Ageing in Place. Aspetos como os horários de funcionamento, (o SAD deverá funcionar no futuro, 24 h/dia – 365 dias/ano), ou o reforço da articulação com as equipas de saúde comunitária, são apenas alguns dos aspetos a considerar.
Se caminharmos nesse sentido, acabarão as intermináveis listas de espera nos Lares, nas Unidades de Cuidado Continuados e até nos próprios corredores dos hospitais. Todos terão a ganhar. Em particular as pessoas idosas.