Comedorias e novos servos

O subsídio de almoço representa uma conquista do movimento sindical. Abrangendo ainda hoje a generalidade dos trabalhadores, este direito traduziu-se durante décadas num determinado montante pago em dinheiro, constituindo nalguns casos, um significativo complemento ao salário. No caso português e nalgumas situações muito pontuais, nomeadamente a nível das chamadas organizações do setor social, esse subsídio pecuniário pode ser substituído pelo fornecimento de uma refeição.

Nos últimos anos essa realidade foi sendo alterada. Com o enfraquecimento da denominada Contratação Coletiva, com o trabalhador a perder força negocial uma vez que os termos do acordo laboral é definido, quase sempre, a partir da vontade exclusiva de uma das partes envolvidas, leia-se entidades patronais, o subsídio de almoço passou a ser pago “em cartão”. Isto é, há um determinado valor que mensalmente é transferido para um Cartão de Débito, não podendo ser levantado em numerário ou utilizado sob a forma de transação, mas apenas na compra de géneros alimentares, roupa e outros bens, junto de grupos económicos muito específicos, sobretudo nas denominadas “grandes superfícies”.

Pode-se pensar que este é um modelo novo. Puro engano. Poder-se-á mesmo afirmar que o mesmo remonta aos primórdios das relações laborais. Para não recuar mais, os servos da Idade Média recebiam a sua parca ração diária como forma exclusiva de pagamento por parte da nobreza feudal. Esse sistema perdurou, com contornos em tudo semelhantes, nas zonas rurais do Alentejo até aos meados do séc. XX, com os trabalhadores rurais a receberem uma parte do seu soldo, em géneros alimentares, as conhecidas “Comedorias”. A esse propósito tenho bem presente os relatos do meu avô paterno, que regularmente contava que quando em 1918 regressou da Grande Guerra, passou a ganhar 7$00 ao ano, mais as ditas comedorias: “um bácoro das ervas, 10 litros de azeite e um alqueire de grãos”. Num ano, claro.

No advento da Revolução Industrial, muito operários eram obrigados a gastar uma parte do seu salário nos chamados “Armazéns Gerais” das próprias empresas, ali se abastecendo de alimentos e outros bens de primeira necessidade. José António Piqueras, conhecido especialista em História Social, na sua obra “O Movimento Operário” (Campo das Letras, 1995), explica em detalhe a lógica subjacente a esse processo, que levou a “formas de pagamento que permitiram maior exploração. O salário pago em vales obrigava os trabalhadores a fazerem as compras na cantina da fábrica”, (Piqueras, 1965: 16).

Em Portugal, nos coutos mineiros de propriedade belga ou inglesa, o modelo era o mesmo. Felicidade Paixão Marques, (assistente social), no seu estudo de 1947 - Alguns Aspetos Sociais da Região Mineira de S. Domingos – que levou a cabo junto do operariado das Minas de S. Domingos, dava conta que “A população de S. Domingos e arredores, cujos chefes de família são mineiros, abastecem-se no Armazém Geral da empresa que vende mercearias, fazendas e calçado. Todas as pessoas são obrigadas a levantar o racionamento completo, caso contrário, não lhes vendem nada…O Armazém Geral não vende fiado, a não ser roupas e calçado, que facilitam o pagamento em três prestações mensais, descontadas logo no ordenado”, (Marques, 1947: 36).

Quer Piqueras, quer Marques, descrevem em detalhe este modelo de circulação fechada do capital, que levava a que o montante pago em salários, acabasse por regressar, inevitavelmente, aos cofres de onde tinha saído.

Esta semana, comemoram-se 48 anos do 25 de abril.

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