UMA CERTA ESPÉCIE DE LOUCURA

Aquele corpo, naquele caixão, naquela sala, naquela casa, não era o João. Era apenas o seu corpo, sem vida. Fomos um casal durante algum tempo. Acabámos por nos separar. Passaram anos. Deixámos de nos ver.  A semana passada ligou-me. Disse-me que estava a morrer e recordou-me a promessa que lhe havia feito, no princípio da nossa relação, num final de tarde, em Itália, após um dos meus concertos: Se eu morrer antes de ti, conto contigo, com o teu violoncelo, e com Bach, no meu velório. A rir, disse-lhe que sim, sem dar grande importância. Estava demasiado feliz, na ocasião. Mas o João estava a falar a sério. Mais tarde percebi que, mesmo a brincar ou quando levado pela ironia, normalmente corrosiva, o João não mentia. Nem para agradar, fosse a quem fosse, nem para amenizar os efeitos do que queria dizer, daquilo em que acreditava. Apenas não sabia ser de outra forma. Tudo nele era profundo, intenso, apaixonado. Ousado. Sem meio termo, e sempre “para ontem”. Ou então não valia a pena: era tédio. Quando tinha um objectivo, para ele próprio ou para ajudar alguém, era incansável, e a pessoa mais generosa que conheci.

Era uma pessoa-luz.

Contudo, esta “louca” forma de estar na vida determinava que a impaciência e a ansiedade o dominassem. Ele nem sempre conseguia encontrar um equilíbrio e eu tinha dificuldade em conseguir acompanhá-lo. Por isso, viver com ele era maravilhoso e, ao mesmo tempo, doloroso. Quando percebemos que não estávamos a conseguir ser felizes juntos, optámos pela separação. Cada um seguiu o seu caminho, a sua vida. Hoje voltei. Voltei para o seu velório. Eu, o meu violoncelo, e Bach. Tenho uma promessa a cumprir. Estejas onde estiveres, continua a brilhar, João. E a inspirar-nos. Pessoas como tu apenas mudam de lugar.

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