Sentir na voz o Alentejo

Disse-o Miguel Torga, sobre o Alentejo, “Terra da cor dos olhos de quem olha!”, acrescento eu, e de quem sente.

Venha de onde se vier, chegue-se de onde se chegar, o estar-se [no Alentejo] nunca se aproximará do ser-se, quando é da planície que se fala. Aqui, onde o sol perde de vista o tempo, os dias se alargam nos relógios e o horizonte não tem pressa de chegar, o chão é peito do Homem. Há nele lutas pela sobrevivência, História e histórias de superação e miséria, onde a revolta e a revolução se abriam, fundas, nos colectivos de vozes de terra, que à terra – que a homens e mulheres muito deu e tirou – cantaram amores, a vida, o trabalho e a aridez das lutas em contextos sociais tão díspares, quanto semelhantes aos actualmente vividos. O Cante como ato de resistência. A palavra como arma. A voz como marco. O chão como berço.
Nas tabernas ouviam-se os homens de fim-de-dia, cuja voz forte doía liberta na palavra. Da vida, o peso maior que a sorte, do peito a rigidez árida como chão. Às mulheres, ouviam-nos as foices, em notas de quem sente, no trigo, o coração.

É esta a razão do Cante e da Moda [alentejana]. É esta a tradição e a origem do que hoje musicalmente se ouve e faz por aqui. Independentemente das viagens, influências e do mundo que se tenha. O Cante é dos Homens, sejam eles analfabetos ou letrados, mineiros, operários ou agricultores, estudantes ou doutores, é dos antigos Poetas populares e dos seguintes, é do hoje e do outrora, é da música, tanto quanto da expressão. E é da inovação, também. Das canções que apontam para estéticas e possibilidades muito diferentes, assim como para fusões de caminhos e sonoridades, experimentações e descobertas. É da gente e das gentes que se cruzam, das almas em diálogo da arte em desafio.

E porque não sê-lo?

Vários têm sido os artistas nacionais a espreitar-nos, numa tentativa de compreensão que permita decifrar o poder das vozes que despontam, para nelas entrar. Porque nisto é preciso estar-se por dentro, mais do que no ouvido. Dos 14 aos 30’s, o legado é valiosíssimo. Beja, enquanto berço de uma geração de novos artistas, renasce e cresce em sonho, apesar das vicissitudes do caminho. Estes filhos dos filhos, que são gente diferente, têm florescido e aberto caminho à renovação do Cante enquanto expressão musical, mas, sobretudo, à forma de fazer música, reinventado o ser e estar-se nela. Fazem-no porque o são, a tudo o que sentem, em convívios organizados ou espontaneamente, à roda de uma mesa – tal como antigamente - chamando sempre mais um, porque aqui, este lugar é de todos. E são tantos! A sonoridade das vozes, o encaixe perfeito e as harmonias idílicas que anos a cantar à capella fortificaram. Basta-lhes uma viola e um coro de vozes para qualquer canção ganhar outra dimensão, sem perder o cunho e alma alentejana. E desenganem-se aqueles que os julgam incapazes de conquistar noutros registos.

Num mundo veloz e num sector que, também ele, se tem permitido dominar pela tecnologia e pela inteligência artificial, regressar ao simples, à essência, à palavra e à canção é como um reencontro no abraço das mais bonitas letras e composições nacionais. E é assim que conquistamos peitos abertos, directos às emoções, despertando a curiosidade natural de descoberta do Cante Alentejano, através de propostas musicais de fusão.

Disto são exemplo Pedro Abrunhosa com Paulo Ribeiro e o Grupo Coral e Etnográfico Os Camponeses de Pias, Os Dama com Buba Espinho e Amigos, Tiago Nogueira com Luís Trigacheiro, Pedro Mafama com Grupo Coral do Sindicato dos Mineiros de Aljustrel, João Gil “Ao Redondo” com Os Caixeiros Viajantes, António Zambujo e o Rancho de Cantadores de Aldeia Nova de São Bento.

Porque ter Alentejo na voz é trazer-nos a todos por dentro.

Venha de onde se vier, chegue-se de onde se chegar, quem chega e de nós nada sabe, quem chega e em nós nada sente, parte sem nada saber.

 

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