Pessoas migrantes no Perímetro de Rega de Alqueva

O que falhou

No passado dia 21 de novembro a Cáritas Diocesana de Beja levou a cabo um evento em torno da problemática das pessoas sem abrigo naquele concelho, tendo um grupo de docentes do IPBeja apresentado o perfil transversal dessas pessoas com base num projeto da Cáritas, e que entre março de 2022 e setembro deste ano acompanhou 449 sem abrigo, em que 83% eram de nacionalidade estrangeira.  Nesse mesmo dia, a Polícia Judiciária desenvolvia uma significativa operação nos concelhos de Cuba e Ferreira do Alentejo, de onde resultaram vários detidos, alegadamente por, e entre outros crimes, estarem indiciados de auxílio à migração ilegal.

A situação não é infelizmente nova e era há muito previsível. Numa crónica que há anos escrevi no Diário do Alentejo, afirmei então que se nada fosse feito, repetir-se-ia em Beja o drama humano vivido na costa sul de Espanha, onde uma agricultura desordenada do ponto de vista ambiental e social, fazia chegar aquelas paragens milhares de pessoas do leste da Europa e do Norte de África, que vagueando de trabalho precário em trabalho precário, eram sujeitos aos desmandos das redes mafiosas dos seus países de origem, das locais, e das empresas e “empresários” sem escrúpulos que em todo o sul da Andaluzia os exploravam e exploram.

No caso do Baixo Alentejo e de Beja em particular, o fenómeno repetiu-se e parece estar a intensificar-se. O que falhou então. Falhou desde logo a EDIA, que ao estar na base da gigantesca transformação ocorrida nos campos do Perímetro de Rega de Alqueva, e em termos de planeamento, não soube, ou não quis, perceber que esse novo modelo de exploração da terra, implicaria enormes fluxos de mão de obra, sujeita a todos os desmandos de um tempo de relações laborais frágeis.

Falhou o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, que não soube, ou não quis, promover uma estratégia de acolhimento dessas pessoas em articulação como Ministério da Agricultura, a EDIA e as organizações representativas das empresas agroindustriais, e que em última instância mantem algumas das condições para que esses processos de escravatura prosperem, nomeadamente com a manutenção de legislação laboral, como por exemplo as empresas de trabalho temporário ou a figura do empresário em nome individual, mecanismos que funcionam como esconderijo legal para acoitar as redes locais de trabalho escravo.

Falharam as empresas agrícolas e industriais, que não souberam, ou não quiseram, avançar com estruturas de acolhimento dessas pessoas, que para além do alojamento, lhes garantisse apoios tão básicos como a legalização da sua permanência em Portugal, ou o acesso aos cuidados de saúde. Algumas dessas empresas, sedeadas ou com representação no nosso distrito, ostentam de uma forma pomposa o título de entidades com “Responsabilidade Social”, como se esse atributo se resumisse às dádivas de uns quantos litros de azeite, ou a uns pozinhos de caridade em determinadas alturas do ano.

Uma palavra de apreço para o extenuante trabalho que estruturas locais como associações e autarquias, desenvolvem no minimizar dos impactos dessa chaga social que nos devia envergonhar como comunidade. Mas não tenhamos ilusões, essas entidades, são apenas meros executores terminais em torno dos impactos de um processo que não foi objeto de qualquer planeamento social por parte de quem de direito, desde logo de quem maior responsabilidade tinha no assunto: o Estado.

O que se está a passar em Beja, Cuba, Odemira, Serpa ou Ferreira do Alentejo e um pouco por todo o Alentejo, diz muito do país que somos. Logo nós, terra de emigrantes que tantas vezes nos insurgimos a propósito das situações vividas pelos portugueses nos “bidonville” das periferias de Paris, ou de um certo xenofobismo helvético.

Talvez valha a pena recordar, que quando nos anos sessenta e setenta do século passado se assistiu a uma enorme vaga de emigrantes portugueses para a Alemanha, muitos deles a “salto”, e quando naquele país existia um Estado Social robusto, esses homens e mulheres foram acolhidos por empresas e organizações públicas que lhes garantiram o acesso a uma habitação, a escola pública para os seus filhos, a serviços de saúde e a um conjunto de outros fatores de inserção, que fizeram com que esses nossos compatriotas se sentissem, finalmente, pessoas. E que de um modo geral, encontraram nalguns países, um nível de dignidade que nunca tinham tido no seu.

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