Sinhazinhas Flor (e o seu único marido)

Confesso: estava a aguardar com alguma curiosidade, embora não excessiva, um ataque de leão (é assim que ele se autointitula, ó pobre vida selvagem) da chefe de divisão cultural da Câmara de Beja às acusações publicas e publicadas que a dita felídea tem vindo a ser alvo nos últimos meses. Mas não, Florbela Fernandes, não ruge em público. É mansinha, afinal. Mia fininho, mesmo quando sobre ela recaem denúncias de persecução e de perseguição sobre técnicos culturais de mérito internacionalmente reconhecido. De se imiscuir, com a arrogância letal do matador em trajo-de-luzes (de chicuelinas e verónicas, pelos vistos, ela percebe), na gestão madura e competente dos poucos equipamentos culturais municipais que ainda subsistem com algum tino. De ter implodido a Casa da Cultura, esse antro de gente com ideias esquisitas e com vontade de aprender, de pensar, de partilhar conhecimento, de fazer coisas. De se vangloriar entre as suas “ultras” sorridentes parceirinhas (e tão tristemente eufóricas que elas são, coitaditas) de que Beja não precisa de arte-contemporânea para ser o tão aclamado “Centro do Sul”.

Tenho de voltar ao confessionário: estava à espera de tudo e de mais alguma coisa, mas jamais de tamanha sonsice. No jornal-do-regime-cá-da-nossa-paróquia fez a “generala” (a designação também é dela para si própria) publicar esta semana uma nota de esclarecimento, amansada, onde reconhece que o que faz é para “pugnar, sempre, pelo interesse público”. Importa-se de repetir? “Interesse público”? Quando li isto, não me contive: ri que nem um condenado (experimentem, façam-me esse favor, rir é um escape do caraças contra a ignorância). Que ganda-lata! Quer então dizer que impedir as bandas rock da cidade de ensaiarem, que impossibilitar o acesso às mais variadas artes a centenas de jovens ou que banir desenhadores e ilustradores é do “interesse público”? Mas de que “interesses” e de que “públicos” está a dita a falar? Há qualquer coisa aqui que me escapa. Ou talvez não. Afinal, como bem diz a implacável regeneradora da cultura bejense, Florbela Fernandes é apenas uma “funcionária pública”.

Tenho uma tese sobre a administração autárquica da cultura e sobre o potencial de desenvolvimento de pequenas cidades periféricas como Beja: a coisa merece um pelouro próprio, autónomo e com desafogada emancipação financeira. Não é o caso, infelizmente. Encafurnar a cultura na já ataviada mochila de tarefas e funções do presidente executivo revela uma de duas coisas. Ou a cultura é apreciada como mera alínea, verbo de encher que leva trato de vão-de-escada (como aparenta suceder). Ou então o autarca presidente tem uma sensibilidade desmedida, uma visão mundividente, um rasgo civilizacional que a mete a ela, à cultura, na linha da frente do desenvolvimento económico e social do seu concelho (o que, de todo, não está a suceder).

Não sei do que falaram em privado, Paulo Arsénio e Graça Fonseca, quando a ministra andou por Beja no início deste mês (sim, até o Governo tem tutela própria para a cultura). Mas temo o pior. Em público, o presidente de Beja não teve direito a botar palavra, uma vez que não quis aderir ao tal projeto de “arte-contemporânea” que trouxe a ministra da Cultura à cidade, o “Futurama”. Nesse particular, o brilharete ficou para a vereadora da cultura da câmara de... Serpa. Adiante. Mas se o bom povo quiser mesmo ter uma ideia do “estado da arte bejense”, nada como espiolhar no “sítio do costume”.  Facebook de Paulo Arsénio, 1 de abril: “um dia em Beja da Senhora (sic) Ministra da Cultura, Graça Fonseca. Iniciou por Beja o Roteiro Nacional da Cultura. O facto do Roteiro se ter iniciado em Beja é o reconhecimento da qualidade dos equipamentos culturais do Município, da nossa programação e dos nossos artistas e agentes culturais locais”. Uau!

Então e por que razão não levou o senhor edil a sua culta visitante à Casa da Cultura? “Foi muito apertado. Numa próxima oportunidade será contemplada. Verbas para recuperação de imóveis não há... estamos a recuperar sanitários que há muito esperavam”. Ah bom, assim já ficamos mais descansados! Da próxima vez que a ministra vier a Beja já terá loiça nova para sentar o rabinho. Afinal, tudo é cultura, não é verdade? Inclusivamente a soltura. Ou como diria, exultante, o programador do Teatro Municipal Pax Julia: “Beja a marcar pontos”.

Sim, é triste, muito muito muito triste, e não é inspiração do meu mau-humor nem embirração particular. Está lá, no tal sítio onde afinal se passa tudo o que passa em Beja. Querem saber mais? Perguntemos então: e em relação às artes-contemporâneas, que por aí andam a encher a boca da má-língua, são “desinteressantes” para Beja? “Não é verdade, tanto que vamos ter uma série de exposições de arte contemporânea, a saber:...” (apenas um pouco de suspense antes de informar que a citação provém da douta responsável pelo Centro Unesco de Beja, de onde não há muito foi corrido a pontapé um competente programador).

Ora vamos lá então saber o que nos espera e o que entente a senhora Unesco sobre arte-contemporânea. Estão preparados? “Maio – Jorge Serafim – Centro Unesco para a Salvaguarda do Património Imaterial – Beja; Junho – Exposição integrada na feira do livro; Julho – Exposição do autor Silvestre Raposo – Centro Unesco; Setembro – Flávio Horta – Centro Unesco”. Eu até me apetecia comentar tamanha barbaridade, mas recuso-me a fazê-lo em “salvaguarda” de alguma pinga de discernimento que ainda me possa restar perante a ignorância, a incultura, o despreparo e o iletrismo. Deixo a interpretação exegética para a própria: “Se os autores acima descritos não são de arte contemporânea, então desconheço o que é a mesma!”. Já perceberam onde estamos metidos?

Pois, e é esta mesma nossa “contemporânea” que toma a liberdade de anunciar num comentário de Facebook, pois claro, que em julho será inaugurado o Centro de Arqueologia e Artes, na Praça da República, com uma exposição (de arte-contemporânea será, inevitavelmente) da “Culturgeste” (sic). Corrijam-me se estiver equivocado, mas esse não é o tal equipamento que está concluído e encerrado a sete chaves, tal como fizeram com o painel de arte-talvez-essa-sim-contemporânea do Vhils, vai para quatro anos?  

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