O que é que nos falta?
É urgente, parece-me, pensar as cidades, a arte, a alma, o património e as gentes, assim como perceber e debater a sua conexão e interligação, enquanto contributo para a alavancagem e construção do novo - entenda-se, futuro – sem evitar questionar o modo como poderemos avançar, mudar paradigmas e corrigir lacunas, sem colocar em causa a herança que nos foi sendo doada ao longo dos tempos.
As cidades são, em primeira instância, os seus
habitantes e o resultado das finas camadas de História sobrepostas que lhe
conferem identidade, essa que, com o avanço dos tempos, a globalização, os
movimentos migratórios e as políticas culturais ineficientes tem vindo a
perder-se e a ditar o desaparecimento de cidades que, numa outra Era, se
assumiram grandes potências Históricas.
Não sendo coincidência, Beja reúne todos os sintomas.
Reverter caminho exigirá, acima de tudo, ultrapassar a crise identitária
vigente, resgatando as suas figuras marcantes e ícones – de todos os
quadrantes, Eras, classes e géneros - marcos históricos, monumentos, datas e
acontecimentos relevantes, tradições. Reatribuir-lhes o seu valor, aceitar o
seu contributo, entender as particularidades e história, encontrando a forma
certa de a devolver à cidade, ao chão do seu chão, ao berço e restabelecer o
laço umbilical entre o que somos e fomos.
É no presente que se inicia toda e qualquer estruturação social, numa óptica de
continuidade, resiliência e concepção do tempo futuro, no qual o homem de hoje
já não viverá, mas permanecerá. Porque a cultura é essa conversa entre partes
distintas, um processo de aproximação fundamental para o desenvolvimento
económico, transformação social e política.
Enquanto força motora da mudança, a cultura opera a capacidade de lidar com o
mundo, com a globalização e alterações demográficas, imaginando alternativas,
entrelaçando pessoas e origens, abrindo portas e desenhando-as, se necessário, por
ser capaz de recuperar tradições e adaptá-las aos novos tempos sem a teimosa
ilusão de retorno ao passado. E isto é, também, o direito à cidade, espaço
plural e colectivo, onde a sociedade civil exerce a sua força crítica e pode
apontar soluções criativas, se a isso se estiver aberto.
É necessário criar movimento e ser motor de inspiração, em nome da vida urbana transformada e renovada, onde todos possam exercer e beneficiar do seu direito à atividade participante e à cidade, aos locais de encontro e de partilha, à diversidade cultural. Desde logo através da arte que sempre possibilitou a aproximação entre indivíduos, dotada de uma componente pedagógica capaz de aguçar, promover e desenvolver o pensamento crítico e a abertura ao novo, ao próprio e ao outro, ao confronto e à diferença.
A combinação de identidades numa mesma cidade, por mais pequena que seja, é fundamental
para a sua prosperidade, através do intercâmbio de ideias assentes em novas
necessidades, com impacto positivo na criação e inovação desejadas. Porque a vantagem
concorrencial, provém, também, da vertente cultural utilizada por cidades mais
pequenas, que têm vindo a conseguir, através da valorização da sua essência,
História, património, figuras e carácter desviar as atenções de outras maiores,
promovendo-se. Ou não fosse a identidade de um lugar, num contexto global,
aquilo que faz com que o mesmo se alargue e escape às fronteiras definidas.
Outro aspecto a ter em conta é a capacidade que as redes culturais têm,
enquanto instrumento, de atrair parceiros de forma eficaz, contribuindo para a
alavancagem económica. Até porque à cultura se associam outras indústrias
necessárias que, se agregadas, enquanto actividades que dependem fortemente da
propriedade intelectual para os seus rendimentos, contribuem com cerca de 39%
para o PIB da UE – fica o dado enquanto curiosidade.
As
interfaces culturais estimulam o turismo tanto quanto o mar e o clima e são o
catalisador à volta do qual outras actividades e serviços se podem reunir e
desenvolver. E se ainda não estamos atentos a isto, será melhor começarmos a
estar, de forma a criar estratégias e planos de acção que urgem.
Até porque outra vertente do valor agregado às artes e ao património se mede em
termos de expressão humana, transcendendo os benefícios económicos. Por exemplo, a revitalização urbana
impulsionada pelos artistas e seus projectos, para recuperação da vida e zonas
degradas e/ou abandonadas, assim como a possibilidade de se proporcionarem as
condições básicas ao desenvolvimento de iniciativas mais informais,
direccionadas sobretudo aos jovens, capazes de fornecer às cidades o que lhes
falta para que se tornem mais competitivas.
No fim de contas, valorização pressupõe isso mesmo, o apoio às organizações
culturais e artistas, investimento contínuo e visibilidade, uma vez que todos
os benefícios anteriormente citados se perdem quando os apoios são vistos como
medida extraordinária.
E se são já reconhecidos os direitos culturais, pela UE, como fundamentais para
o desenvolvimento humano e a cultura enquanto necessidade básica para o
desenvolvimento sustentável das cidades, onde é que erramos? Provavelmente na
descrença relativa ao facto de a sustentabilidade se afirmar como elemento
crucial na política económica e social das cidades e na premissa de que só uma política
da cultura sólida assumirá um impacto positivo nas iniciativas privadas e
públicas, com o reflexo e retorno desejados na estratégia de coesão e crescimento
económico.
Em suma, uma cidade deve ser capaz de garantir a liberdade de escolha, sem que isso se afigure factor de exclusão, converter-se num espaço de circulação pluricultural e atrativo, onde os seus agentes, grupos, indivíduos (residentes ou visitantes) possam produzir, assistir, disfrutar, encontrar-se e usufruir das mais diversas e diversificadas áreas culturais e artísticas. Mas ainda nos falta isso: falta-nos tornarmo-nos cidade.