O Polémico Bispo de Beja

Esta é a história – com outras tantas dentro ela – do último trabalho censório num Portugal já em liberdade, e sem PIDE, Direcção-Geral dos Serviços de Censura à Imprensa, Comissão de Censura, Censura Prévia, ou Lápis Azul. Aconteceu em 1980, durante um Governo da AD, liderado por Sá carneiro. Um Portugal já democrático, mas ainda demasiado atrasado na mudança de costumes cristalizados em mais de quatro décadas de submissão à autocracia do Estado Novo quase umbilicalmente ligado à Igreja. Foi neste ano, a 7 de Julho de 1980, que aconteceu o último acto persecutório de censura editorial. O último Índexde Portugal.

Mas já cá voltamos, porque a história começa muitos anos antes. Viajemos até ao dia 5 de Outubro de 1910. Com a alteração de regime, a República anuiu que todos os Bispos (que também aceitaram) que transitavam da Monarquia mantivessem os seus prelados. Todos, menos um: o Bispo de Beja.

D. Sebastião Leite de Vasconcelos era natural do Porto e chegou à liderança da Diocese de Beja no dia 11 de Março de 1907, tendo tomado posse na Igreja do Salvador, perante uma multidão que, segundo relatos da época, rondava os seis mil participantes. Na cerimónia, e como gesto de caridade cristã, D. Sebastião vestiu completamente 57 crianças pobres da cidade. Foi este género de atitudes que, inicialmente, quando estava ainda no Porto, chamaram a atenção dos republicanos, que viram no prelado uma promoção dos seus próprios valores. Mas as coisas não correram bem.

Dois anos depois de ter chegado a Beja, o Bispo demitiu dois professores – e irmãos – que granjeavam grande preponderância no Seminário de Beja. O prior Manuel Ançã foi suspenso de escrivão da Câmara Eclesiástica por indisciplina, e o cónego José Maria Ançã seguiu o mesmo caminho por se ter colocado ao lado do irmão. Mas as coisas não ficaram por aí. Os dois irmãos quiseram vingar-se do Bispo e resolveram tornar pública a sua homossexualidade.

Poucos meses antes da proclamação da República, os defensores da causa aproveitaram o escândalo para promoverem os ideais anticlericais e antimonárquicos. Um desses casos originou, em 1910, o poema fescenino e anti-religioso “Bispo de Beja”, de Homem-Pessoa, pseudónimo do editor Santos Vieira, um livreiro dado a algum sensacionalismo. Deixo, apenas, um pequeno excerto: “ (…) o Pax-juliano, suserano do Papa, onaniza o tal moço, cujo phallus, erecto – um príapo colosso – é quase vertical, tendo a glande beluína muito brilhante, palpitante, purpurina (…)

A publicação circulou clandestinamente durante o último ano da Monarquia, e depois livremente durante a Primeira República. Os versos expunham a suposta vida devassa do Bispo através de lascivas quadras satírico-obscenas. Vieira acusa, ainda, o governo monárquico de encobrir o caso, alargando ainda mais o fosso que separava o (prestes) novo regime, do Bispo de Beja.

Que começou com a acusação por parte dos irmãos Ançã (diga-se, de passagem, pouco dados ao celibato, vivendo em concubinato com duas mulheres, de quem tinham filhos). Entretanto, uma vitória (pírrica) para o Bispo. O Ministro da Justiça, Francisco José de Medeiros, invocando a prerrogativa da Coroa (lei de 28 de Abril de 1845), segundo a qual o facto devia ter sido comunicado ao Ministro, exigiu a recondução dos dois professores. O Bispo não cedeu, o Governo não quis impor-se e o Ministro pediu a demissão.

Depois da publicação do livro dos versos despudorados “O Bispo de Beja”, e durante os anos seguintes, muitíssimas caricaturas e historietas grosseiras sobre a suposta homossexualidade de D. Sebastião foram dados à estampa. Como a caricatura de Francisco Valença, que se tornou famosa depois de se mostrar nas páginas do jornal “A Capital” (diário republicano 1868-1938), em 1912, na qual representava o Bispo vestido de sevilhana. E porquê de Sevilhana?

Depois de entronizado Bispo de Beja, D. Sebastião instituiu visitas pastorais, regulares aos vários concelhos da Diocese de Beja. Quis o destino que no dia 28 de Setembro de 1910 o prelado viajasse para Moura e Barrancos em visitas que durariam até ao dia 5 de Outubro. Nesse mesmo dia rebentava a revolução. Algum tempo depois o Bispo recebeu recado do vice-reitor do Seminário de Beja dando conta do estado caótico em que se encontrava a cidade, e que o próprio Paço Episcopal tinha sido alvo de saque, vandalismo, e que havia muita violência e grandes desacatos.

O Bispo teve medo de regressar a Beja e refugiou-se em Rosal de la Frontera, aldeia raiana do lado espanhol da fronteira ibérica. Daí consegue, mais tarde, chegar ao Seminário de Sevilha. O Bispo de Beja era agora um desertor. Um oponente aos valores da República. Dias depois dá conhecimento da sua ausência ao Ministro da Justiça, e acrescenta três nomeações para governadores do Bispado (o vigário geral mais dois cónegos substitutos). O Governo respondeu-lhe com frieza a 21 de Outubro, suspendendo-o de todas as funções por se ter ausentado sem licença do poder civil, e anulou as nomeações que havia solicitado. Por decreto de 18 de Abril de 1911, O Governo destituiu o Prelado de Beja das suas funções e instaurou contra ele um processo judicial.

Na edição de 12 de Novembro de 1910, no epicentro do calor revolucionário, o jornal bejense “O Porvir” (Semanário de Propaganda Republicana) noticiava que “a commissão administrativa da Câmara Municipal de Beja, constando-lhe que elementos reaccionários trabalham de várias formas na reintegração do padre Sebastião de Vasconcellos, no lugar de bispo de Beja, que exerceu de forma a merecer as antiphatias e até mesmo o desprezo de todos os munícipes, pelo seu procedimento político e moral, protesta desde já contra tal intenção que, a levar-se a effeito acarretaria fortes perturbações da ordem pública, por ofender os brios e a dignidade do honrado povo de Beja.” A Moção foi aprovada por unanimidade.

Já a 31 de Dezembro de 1910, o mesmo órgão dava nota da fuga do Bispo para Sevilha, comunicando que “o padre Sebastião de Vasconcellos, que fugiu de Portugal para aquela cidade hespanhola depois de proclamada a República, por não ter quem lhe defendesse aqui a enormidade dos seus crimes. (…) É detestado pelos povos do districto de Beja, pelos habitantes d’esta cidade, e por todos os democratas da nação portugueza. (…) Esse padre abominável e maldito continua em terras de Hespanha expellindo ódio, vomitando rancor, vertendo intolerância e cuspindo vinganças contra os súbditos portuguezes”. Por entre muitas mais notícias carregadas de intenções fortes sobre o Bispo, e outras mais trocistas, a verdade é que a imprensa continuou a incluir nas suas agendas notícias sobre o Bispo. Quase sempre apelidando-o de vigário, padre ou prior, o que era uma forma de lhe diminuir a importância, bem como usando capitulares minúsculas em todas as designações que, segundo a importância da religião, exigiam capitular maiúscula.

Em 1912 D. Sebastião deixaria Sevilha para rumar ao Vaticano. A 17 de Setembro de 1915 foi nomeado assistente ao Sólio Pontifício, e a 15 de Dezembro de 1919 foi elevado a Arcebispo titular de Damietta. Morreu em Roma a 29 de Janeiro de 1923, não sem antes se ter esforçado para dificultar as relações entre a Santa Sé e a República Portuguesa.

Fruto de toda a perturbação social e política existente na Diocese baixo alentejana, é escolhido o Bispo D. José do Patrocínio Dias - o Reformador - com vista a organizar a evangelização da região. O Bispo covilhanense toma posse no dia 5 de Fevereiro de 1922 e, das muitas obras que levou a cabo, destacam-se o Seminário de Beja; o Paço Episcopal de Beja; o Carmelo do Sagrado Coração de Jesus; o Bairro de Nossa Senhora da Conceição, destinado a albergar famílias carenciadas; a Sopa dos Pobres São Sisenando; o Jornal Notícias de Beja; a restauração da Sé Catedral; e a Congregação das Oblatas do Divino Coração. O Bispo, que foi recebido à bomba, em Beja, em 1922, mas que durante o seu percurso haveria de conquistar a estima, admiração e amizade dos bejenses e baixo-alentejanos, faleceu a 24 de Outubro de 1965.

E agora voltemos ao início da história: em 1980 o editor Vitor Silva Tavares, proprietário da editora “&etc”, decidiu reeditar a obra de Homem-Pessoa (pseudónimo de Santos Vieira), de circulação livre desde 1910. Pouco tempo depois de a edição estar na rua, viu a casa invadida por um grupo de agentes da PJ e PSP, com mandado de apreensão de todos os exemplares de “O Bispo de Beja”. E assim abandonaram o local com 580 espécimes subtraídos à tiragem total de 1500.

O caso provocou indignação na sociedade portuguesa, sobretudo na classe pensante como jornalistas, intelectuais, e na gente ligada à cultura. Depressa começaram a ser veiculados por toda a imprensa manifestos em defesa do editor e da liberdade de expressão, assinados, por exemplo, por de Raul Rêgo, Maria Estrela Guedes, Fernando Assis Pacheco, ou Joaquim Manuel Magalhães.

Segundo apurou, à época, o Diário Popular, na base dos acontecimentos teria estado um contacto entre um Juiz de Beja e um colega de Lisboa, depois de o primeiro ter sido advertido pela Diocese baixo alentejana. Nunca houve julgamento, o processo foi arquivado, e os exemplares (possivelmente queimados) jamais foram devolvidos. Todo este holofote em torno da obra fez aumentar o interesse na edição e tornou-a bastante procurada por coleccionadores. Oito anos depois, em 1987, a editora “&etc” decidiu reeditar a obra, tendo dessa vez optado pela ilustração de Francisco Valença para figurar na capa (ilustração que acompanha a crónica).

Como escrevi no início, esta é uma história com muitas outras histórias dentro, e que faz parte do estudo da literatura portuguesa; de duas revoluções: a republicana e a dos cravos; da instauração da liberdade pós 25 de Abril; das lutas entre nomárquicos e republicanos; das polémicas sexuais na Igreja, do celibato, entre tantos outros temas. Sobretudo, e como afirma Fernando Curopos em “O Bispo de Beja” (INDEX ebooks, Maio de 2021), "o livro ‘O Bispo de Beja’ não deixa de ser relevante para a história da homossexualidade em Portugal. Com efeito, participará da difusão dos termos "homossexual" e "homossexualidade" no discurso social português" ao mesmo tempo que contribui para o "reacender da homofobia política nos primórdios da República."

Ou, como mais de 120 anos depois, o estado das coisas no nosso País não mudou assim tanto.

 

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