“O mais corajoso dos actos continua a ser pensar pela própria cabeça”

Na sociedade actual, a aceitação e a tolerância ao erro são cada vez menores. Saber lidar com a frustração, com a derrota, com as dificuldades e contrariedades da vida  tornou--se, por isso, uma das nossas maiores lacunas, habilmente aproveitada pela inovadora indústria da felicidade.

Deixam de ter lugar as fragilidades do ser humano, a consciência de que somos falíveis, de que erramos, choramos, quebramos e sofremos, sentimos tristeza, vazio e solidão, de que não acordamos nem estamos permanentemente incríveis, tão pouco plenos e inabaláveis. Em substituição, é-nos vendido – e quase imposto – o vício do optimismo e os novos modelos de sucesso garantido.

Nas redes sociais multiplica-se o ruído, a montra das vidas perfeitas, as frases e discursos motivacionais, os podcasts – quantas vezes vazios de conteúdo, onde o convidado sobressai pelo seu nome e influência e não pelas suas qualificações e competências  – as livrarias vestem-se de títulos que nos garantem resultados rápidos na gestão das emoções, no controlo da ansiedade, na manutenção de relações, na conquista do patamar financeiro ideal ou na construção da carreira perfeita, num fast-food assustador de soluções de cura sem estudos de base cientifica.

Por funcionarem como atenuante do sofrimento, distraindo e removendo, temporariamente, o desconforto do contato com a realidade, o ser humano consome compulsivamente estes conteúdos, apegando-se à ideia ilusória dos resultados fáceis de fórmulas mágicas universais, alheios aos alertas dos profissionais de saúde mental e aos perigos que destas práticas advêm.

Exemplos disso são a ansiedade criada na busca exagerada pela melhor versão de nós próprios, pelo autoaperfeiçoamento, pela excelência e pelo padrão de vida ideal -  ser produtivo no trabalho, ter um relacionamento feliz, dormir oito horas por noite, manter uma alimentação saudável, praticar exercício diariamente, aprender um novo idioma, ler um livro por mês, meditar, investir, ter tempo para os filhos, estudar, manter a casa impecável, ser inspirador e vencer todos os dias – numa rotina quase obsessiva, padronizada e cronometrada ao segundo, que nos afasta de nós e daqueles que nos rodeiam, despoletando uma permanente sensação de insatisfação pessoal, que perde o seu propósito inicial, criando novos modelos de competição interna e social.

Se não for claro, basta pensarmos na cultura de excessos presentes no feed das nossas redes sociais, que não só funciona como troféu – eu sou melhor do que tu ; eu consigo ou tenho isto e tu não; eu penso desta forma e não me interessa mais nada; acordo antes das cinco e tu continuas deitado - como transformam o desenvolvimento pessoal em competições vazias, nas quais, quem ganha, perde sempre algo de si. 

Contrariamente aos princípios, métodos e práticas da medicina terapêutica, existem livros que defendem o poder das afirmações positivas, recomendado a alteração do discurso interior negativo, por expressões como “sou ou estou incrível; perfeito; capaz; bonito; brilhante…”, preferencialmente em frente a um espelho, gerando verdadeiros conflitos internos entre quem se é e quem se diz ser. A realidade do indivíduo é uma, a que pretende passar aos outros é outra, experienciando um duelo interno de personalidades contrárias. Isto acontece por via da não realização do verdadeiro trabalho de avaliação interior e posterior transformação, mas sim do uso de máscaras às quais não se pertence.

Diante dos riscos desta monomania será fácil identificar sinais de que nos estamos a desviar do caminho? Sim. Os amigos que se cansam e suspeitam da nossa positividade inabalável, os companheiros que se sentem diminuídos pelos nossos discursos e rigidez, ou sem espaço no meio de rotinas supra ocupadas e repetitivas, quando somos nós a julgar os outros por não cuidarem tão bem de si quanto nós cuidamos de nós próprios, ou quando nos tornamos de tal forma centrados na própria vida que deixamos de prestar atenção ao outro, limitando-lhe o espaço e o acesso a nós, erguendo barreiras inconscientes e distanciando-nos daquilo que nos rodeia. Tudo isto são sinais de alerta e intolerância, severidade, inflexibilidade, obsessão e de que se vive numa esfera fechada e realidade distorcida. Sinais de que é preciso repensar a rota.  

Certo é que a fragmentação social vai acontecendo, que o individualismo e a competição entre indivíduos são cada vez mais comuns, que a empatia e o pensamento crítico deixam de ter espaço, que o foco levado ao extremo, em si mesmo, nos alheia de quem está à volta e que as dificuldades em lidar e enfrentar as vicissitudes e contrariedades da vida são cada vez mais evidentes. Comportamentos que seguem um padrão claro e idêntico, como se múltiplos indivíduos seguissem um guia prático e modelo único de consulta para o dia-a-dia, vestindo um fato universal.


Admitir a possibilidade do fracasso é importante. Assim como aprender a abrir mão de alguns sonhos e de ambições fora de nosso alcance. É preciso saber escolher quem seguimos, o que lemos, o que ouvimos e o que consumimos, com base em critérios seguros e propósitos concretos, mantendo activa a capacidade de reflexão, análise e avaliação do conteúdo, para que consigamos filtrar e reter somente aquilo que, de facto, nos serve, pode ser útil e acrescenta valor.

Claro que, entre tanto ruído e soluções  À la carte, existem bons livros, bons profissionais, personalidades interessantes e bom conteúdo. É preciso saber diferenciar e querer ter tempo para selecionar.

Se é a ansiedade que se agudiza e sente nas rotinas diárias e na procura pela perfeição, é tempo de parar e pensar. Essa é a condição inversa à paz que se deseja alcançar através de práticas de terapia, desenvolvimento pessoal e autocuidado.

O que o outro faz pode não se adequar a nós, à nossa condição, ao patamar onde nos encontramos, à nossa vida, aos nossos sonhos, aos nossos valores e princípios e à responsabilidade que temos sobre tudo - e sobre aqueles - que se encontram à nossa volta.

“O mais corajoso dos actos continua a ser pensar pela própria cabeça”, disse-nos e bem Coco Chanel.

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