
LIVRE-ARBÍTRIO OU ILUSÃO
Apetecia-me desesperadamente tomar um café. Procurei uma mesa na primeira esplanada que encontrei. Escolhi a que me pareceu estar mais isolada. Queria sentir-me segura. Nos dias que correm, isso é um luxo! O empregado veio ter comigo e não tardou a voltar com o famigerado líquido. Acendi um cigarro. Deixei que a fumaça me envolvesse. Assim como os pensamentos. Havia acabado de abandonar uma conversa, nem sei dizer em que ponto. A bem da verdade, o meu interlocutor estava demasiado preocupado em me agredir verbalmente, e muito pouco disponível para discutir ideias e factos: recorria reiteradamente a argumentos irrelevantes, intercalados com comentários depreciativos, transformando a conversa num verdadeiro ataque. Para além disso, aproveitava o seu tom de voz, alto, para constantemente me interromper e impor o seu ponto de vista. Ao perceber que aquilo iria caminhar para a picardia, ou seja, não iria levar a lugar nenhum, pedi desculpa e escolhi “sair de cena”. Ganhei mais alguns impropérios por isso. Apesar de estar convencida de ter tido a atitude adequada, a insolência incomoda-me. Viver e conviver socialmente não deixa de ser uma arte. «Posso oferecer-lhe este bombom de chocolate? Acompanha muito bem com o café e deixa-nos mais felizes. Sabe que o chocolate contém uma substância que estimula a produção de serotonina?» pergunta-me o empregado, de máscara no rosto, com os olhos a sorrir. Agradeci. A simpatia, a afabilidade, a doçura, a bondade… surgiram na altura certa, de forma inesperada, confortando-me, através de um desconhecido. Bem sei que o senhor estava a fazer o seu trabalho. Mas, podia ter escolhido fazê-lo de uma outra maneira, menos calorosa, ou notoriamente “plástica”. Essa não foi a sua opção. Fiquei a olhar para aquele homem que, entre cafés e águas, distribuía chocolates pelas diferentes mesas. Queria fazer os outros (mais) felizes. Neste torvelinho imprevisível, existem alturas em que a luz desaparece e dá lugar à decepção. Uma vez, outra e outra. Tantas, que o indivíduo, exausto, deixa de se importar, deixa de querer saber. «Aquilo? Ok. Pode ser assim. Não quero chatices.» Perdeu o encanto, o valor, o interesse. Anuncia-se o momento de fechar uma porta e de recomeçar. Especialmente dentro de nós. No caminho, é importante não perder a candura. Aquele cuidado com os outros que ultrapassa a cordialidade e que pode, em todas as circunstâncias, ser demonstrado. E também a ingenuidade. Não a ignorante, mas a sábia, aquela que nos leva insistentemente a fazer perguntas e a procurar respostas, mesmo que seja para concluir que as explicações são sempre incompletas. Restam os valores e as convicções. Cada um deixa-se tentar por aqueles que abraça.
Cena do filme “Ferris Bueller Day Off”, de 1986, quando os personagens visitam o Art Institute of Chicago e um deles interage com a pintura “A Sunday Afternoon on the Island of La Grande Jatte” de Georges Seurat (pontilhismo)