Hitler e os Bombeiros Voluntários de Beja

Esta é a história do segundo avião Condor nazi que cruzou o seu destino, durante a Segunda Guerra Mundial, com o do Baixo Alentejo. Vivia-se uma madrugada calma e tépida, naquele 15 de Junho, às portas de mais um Verão no Baixo Alentejo. Era o ano da graça de 1941, e a Segunda Guerra Mundial recrudescia na Europa. Daí a uma semana a Alemanha Nazi invadiria a União Soviética. No mês anterior, em Inglaterra, a Câmara dos Comuns havia sido destruída durante um forte bombardeamento aéreo alemão sobre Londres.

Na herdade da Tapada, junto à pacata vila da Amareleja, Freguesia do Concelho de Moura, alguns populares mal podiam acreditar nos seus olhos quando viram despenhar-se um bombardeiro alemão nas imediações da localidade. Segundo o Arquivo da Câmara Municipal de Moura (PT/AMMRA/DD/000009), “tratava-se de um Focke-Wulf 200 C-3 da força aérea alemã (o mesmo modelo que aterrara de emergência, 4 meses antes, na vizinha Herdade de Santa Marta), que explodiu em pleno voo ao não conseguir livrar-se de uma das bombas que transportava.” A mesma fonte adianta, ainda, que “existem informações oficiais (que sustentam) que, antes da tragédia, o avião estivera envolvido num ataque a um comboio naval, a oeste de Gibraltar e fora atingido por um caça-bombardeiro aliado.”

De acordo com os escritos de Mário Pestana em “Histórias de aviões da II Guerra Mundial no Baixo Alentejo”, no sítio de Internet Portal Clássicos (de 15 Março de 2008) a violenta explosão do aparelho provocou a distribuição dos destroços do Condor ao longo de uma enorme área, tendo caído "num raio de algumas centenas de metros (segundo o Arquivo da C.M.M., abrangeram mesmo um perímetro de cerca de três quilómetros quadrados) entre a herdade da Tapada e o monte de Fornilhos, nas imediações da Amareleja. Nos dois grupos mais importantes dos destroços foram encontrados os cadáveres dos seis tripulantes do aparelho", relatou o Jornal de Moura. “As quatro bombas que o Condor carregava a bordo estavam semienterradas no solo, depois de os aviadores as terem largado, para aliviar o peso do aparelho”. Graças à existência de um dispositivo de travamento nos engenhos explosivos, o rebentamento dos mesmos, aquando o impacto com o solo, foi impedido.

Não demorou muito tempo até que chegassem ao local as diversas autoridades competentes que tinham como primeira missão isolar o espaço e afastar os mirones populares, evitando que estes se apropriassem de partes da aeronave. Não será garantido que todos os destroços tenham sido recolhidos pelas autoridades, havendo rumores de que alguns habitantes guardavam em suas casas peças do avião. A fim de averiguar estas informações, em Maio de 1942, a “PIDE interpela o Delegado Policial no Concelho de Moura, no sentido de este mandar apreender diverso material pertencente ao avião que se despenhara junto à Amareleja.” As forças da polícia política estavam bem informadas. Ao ponto de saberem os nomes dos “indivíduos que detinham o referido material: Lucílio Barbosa, António Pereira Coutinho e Francisco Inácio Serra, sendo que este último tinha em sua posse um fogão eléctrico que pertencera ao avião.”

A tripulação do Condor era composta por seis passageiros: Erich Westerman, Fritz Grotstollen, Erwin Hildenbrand, Gunther Kunert, Walter Reiser e Gerhard Singer. Nenhum elemento das forças nazis logrou sobreviver ao despenhamento do avião.

O Jornal de Moura, de 21 de Junho de 1941, escrevia que "na madrugada de 15 do corrente, cerca das cinco horas, sobrevoou as proximidades de Amareleja, com indícios de navegar em pane, um quadrimotor alemão, cuja passagem foi vista por algumas pessoas em Beja, Serpa e Moura a hora tão matutina, indo explodir, com grande fragor, na herdade da Tapada, pertencente ao Sr. Dr. Domingos Garcia Pulido, a três ou quatro quilómetros daquela povoação e próximo do seu campo de aterragem.” Tendo tentado por todas as formas evitar uma aterragem descontrolada, o piloto levou a cabo a derradeira tentativa de evitar a queda, procurando aterrar o Condor no pequeno aeródromo de Amareleja. Contudo, a manobra foi mal sucedida.

Em 1941 os Bombeiros Voluntários de Beja constituíam a única corporação em todo o Distrito (são a 33ª a nível nacional). Foi justamente por isso que foram chamados a acorrer ao local, onde “procederam à recolha dos corpos das vítimas, bem como do espólio e chapas identificadoras das mesmas. “Os restos mortais dos aviadores foram transportados para a morgue do hospital da Misericórdia de Moura por viaturas da Legião Portuguesa (Terço Independente nº 6) e pela PSP de Beja.”

Os corpos ficaram em câmara-ardente no Convento do Carmo, em Moura (o primeiro convento da Ordem dos Carmelitas fundado na Península Ibérica, em 1251, tendo dali partido os frades que fundaram o famoso Convento do Carmo de Lisboa). No dia seguinte foram trasladados desse local para o cemitério da então vila, onde foram sepultados. “Ao Hospital da Misericórdia foram devidos 458$00, de despesas tidas com os funerais, e ao pároco que acompanhou o funeral a quantia de 250$00.”

Nas cerimónias fúnebres estiveram “diversas individualidades dos dois países, entre as quais o ministro plenipotenciário da Alemanha, barão Von Hoyningen-Huene, acompanhado dos adidos aeronáuticos, militar e naval, o comandante da 4ª Região Militar, o representante do Governo Civil do Distrito de Beja, o Comandante da PSP de Beja, bem como autoridades locais e muitos populares.

Acrescenta, ainda, o Arquivo da C.M.M. que o consulado da Alemanha em Portugal “fez questão de homenagear a memória dos infelizes aviadores no primeiro aniversário da sua morte, solicitando à Câmara Municipal de Moura que tratasse de depositar uma coroa de flores em cada uma das campas dos militares”. Pediu também a intervenção da edilidade no sentido de esta providenciar um responsável cuidador dos túmulos dos alemães, ao que a Câmara respondeu que encarregaria dessa missão o Sr. Francisco de Mira Carrasco, fiscal do Cemitério.

 

Mais uma vez falamos de Zambrano Gomes, o popular fotógrafo espanhol estabelecido em Moura havia vários anos, e que voltou a fazer a reportagem fotográfica de mais este acidente, ao que tudo indica, por encomenda do Ministério do Interior.

O texto de Marco Pestana fala-nos de uma testemunha privilegiada dos acontecimentos dessa madrugada: o pastor da Amareleja, Domingos Ramalho. Os tempos eram de carestia, e as populações raianas viam no contrabando com Espanha uma forma de ajudar a trazer o sustento para as suas mesas. Foi o caso de Domingos Ramalho. Ao regressar do país vizinho, depois de vendida a carga que transportava, em mais uma viagem nocturna, e passando pela herdade da Tapada, com destino a sua casa, presenciou a explosão de uma aeronave na escuridão do céu. Viu depois o enorme Focke Wulf Fw 200 Condor, despenhar-se, envolto em chamas, arrastando para a morte os seus seis ocupantes.

Também o amarelejense António Bolrão esteve entre as centenas de pessoas que foram observar os destroços do Condor. Segundo transcreveu Marco Pestana, Bolrão terá contado que "o avião, um quadrimotor, estava partido aos bocados. Um bocado duma asa aqui, mais à frente uma parte da carlinga com dois cadáveres carbonizados, carregadores de metralhadora, destroços dos motores, eu sei lá... Pensou-se inicialmente que alguns aviadores teriam conseguido escapar, porque se viam vários pára-quedas". Porém, "mais tarde soube-se que não sobreviveu ninguém".

Uma das dúvidas que persistem diz respeito às causas do acidente. Na realidade era bastante frequente a violação do espaço aéreo nacional por parte dos pilotos de ambos os lados em guerra. “A importante localização geoestratégica de Portugal, entre o norte da Europa e o norte de África, e próximo de importantes rotas marítimas, jamais permitiria que o País se mantivesse à margem do conflito”. Assim, e apesar da proclamada neutralidade, o país não possuía meios (nem vontade firme) para impor o respeito pelo seu espaço territorial.

Escreve Alberto Franco, na crónica “Asas Sobre a Planície”, na já aludida edição do Alentejo Ilustrado, que “citado por Joaquim Rodrigues, historiador da propaganda e da espionagem no sul do País durante a II Guerra Mundial, o investigador alemão Günther Ott sustenta a opinião do acidente ter origem em causas acidentais. Num texto publicado na edição de Outubro de 1991, na já referida revista francesa "Le Fana de l"Aviation", Ott afirma que "razões técnicas estiveram provavelmente na origem da queda, que começou a elevada altitude". Todavia, contrariando esta opinião, duas testemunhas oculares, dois agentes da GNR em serviço na herdade de Fornilhos (muito provavelmente vigiando as movimentações dos contrabandistas), garantiram ter visto um combate aéreo.

Diz-nos Marco Pestana que, de acordo com um relatório do Capitão José Rosas, Comandante do Batalhão nº 3, 2ª Companhia da GNR de Beja, os soldados nº 57/4183 e 175/5276 declararam ter ouvido, pelas três horas da manhã, "um ruído de motores de avião, verificando que sobre a propriedade se travava um combate aéreo entre aviões cuja falta de luz não permitiu reconhecer a identidade. Acompanhando o ruído dos motores, ouviam-se distintamente as rajadas das metralhadoras". Há depois um intervalo, mas cerca das quatro horas "novamente os ruídos dos motores se fizeram ouvir bem como as rajadas de metralhadoras". Os guardas "não sabem o número de aviões, porém ouviram ruídos de motores que se afastavam na direcção sul e nascente".

Não estavam sozinhos nesta sua versão, os militares da GNR. Diferentes depoimentos confirmam que nessa madrugada vários aviões sobrevoaram a região alentejana. Um telegrama do comandante do posto da GNR de Reguengos de Monsaraz indica que "aviões desconhecidos" sobrevoaram a localidade, às quatro da manhã. Pouco depois dessa hora passaram também "sobre Cuba aparelhos desconhecidos com rumo nascente-poente. Em Mombeja, Aljustrel, Castro Verde, Mértola e Beja, foi notada a passagem de aviões quase à mesma hora".

A tese ganha força se atentarmos a uma nota do Alto Comando da Luftwaffe, que refere um raide contra um comboio de navios mercantes ingleses nessa data. Como tal, é bastante plausível que as movimentações dessa noite no espaço aéreo alentejano estivessem relacionadas com essa operação que se desenrolou a oeste de Gibraltar, tendo sido "destruídos cinco navios mercantes com o deslocamento total de 21 toneladas". Há, pois, uma forte possibilidade de o Condor despenhado na herdade da Tapada ter sido um dos algozes das embarcações da coroa inglesa. Se o avião foi atingido pelas antiaéreas britânicas, ou num possível combate aéreo nos céus de Amareleja ou, ainda, se foi apenas um acidente… essas questões permanecem sem resposta.

O que não ficou sem resposta do Terceiro Reich foi a pronta acção humanitária dos Bombeiros Voluntários de Beja em todas as operações de resgate e identificação dos corpos das vítimas alemãs. Trabalho árduo e difícil, feito exclusivamente pelo estrito dever humanitário, e sem olhar à proveniência das vítimas. A tarefa era perigosa, dado ainda poder haver outro tipo de explosivos no avião, e que podiam ser deflagrados. O calor era muito, devido ao incêndio que devorava os restos do avião, alimentado pelo combustível da aeronave. Dois corpos carbonizados estavam, ainda, presos dentro do que restava do cockpit.

Face a todos os riscos corridos pelos BVB, a cúpula do III Reich decidiu homenagear a corporação, enviando para Beja uma salva de prata como agradecimento do seu honroso trabalho. Nela pode ler-se o texto: “Aos Bombeiros Voluntários de Beja, como preito de reconhecimento dos seus méritos por ocasião do desastre ocorrido a aviadores alemães em 15 de Julho de 1941. O Govêrno do Reich Alemão.”

Esta salva de prata é um dos tesouros históricos do espólio patrimonial dos BVB que contam com 134 anos de actividade e que, neste momento, e em boa hora, está a ser inventariado e valorizado sob a orientação de António José Barahona que pertence à Associação de Defesa do Património de Beja – e que me ajudou a limar algumas arestas deste caso – e um dos muitos elementos de uma família desde sempre ligada à corporação de Bombeiros bejense. Em colaboração com este trabalho de preservação e catalogação do acervo dos BVB, estão uma dezena de voluntários da EDIA. O objectivo será criar um museu dedicado à história da Corporação Bejense. E este episódio, do bombardeiro alemão despenhado no Distrito de Beja, é apenas uma das suas muitas histórias que urgem ser conservadas, tratadas e conhecidas.

Fotos de Arquivo : Câmara Municipal de Moura

Foto da Salva: Bruno Ferreira

 

 

 

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