Há química na governação

Iniciei, há uns meses, uma das minhas crónicas com as seguintes linhas “Os acontecimentos recentes e repetitivos em sectores sensíveis do panorama nacional, têm criado, à semelhança do que temos visto acontecer noutros países, com maior ou menor grau de influência, um clima de insatisfação, contestação e suspeição relativo a instituições e figuras nacionais de relevo que, face à sua posição e aos valores sociais que nos regem, seriam, à partida, por nós, colocados acima de qualquer suspeita.”
Suspeitas essas que recaem, agora, sobre um primeiro-ministro demissionário, o seu chefe de gabinete, um dos seus amigos mais próximos, assim como sobre membros do  seu governo anteriormente visados noutros “casos e casinhos”.

Sob a manto da premissa “à política o que é da política, à justiça o que é da justiça”, António Costa foi conseguindo impedir que o regime democrático fosse fortemente confrontado com as suas falhas profundas e sucessivas investigações e suspeições sobre membros do Governo, não usando para com eles o mesmo critério de exigência agora aplicado a si.

Quer se goste mais ou menos de Costa, a verdade é que a lei não obrigava à demissão, até porque uma coisa são as exigências inerentes à ética política, outra são as consequências penais, e sobre António Costa não é sabido, se não de forma vaga, que suspeitas concretas sobre ele recaem, assim como a sua solidez. Tudo o que sabemos resume-se ao alegado “desbloqueio de procedimentos” – sem mais informação e transparência - que estará na origem de uma investigação, independente das demais, conforme se lê num parágrafo do comunicado da Procuradoria-Geral da República.
Assim, a decisão foi um assumir de responsabilidade política e não de responsabilidade judicial. É preciso distinguir e não cair no facilitismo do julgamento aberto em praça pública e horário nobre.

Sendo evidente, ao primeiro-ministro, a fragilidade da sua posição perante a investigação criminal em curso e as buscas judiciais à Residência Oficial, envolvendo por suspeitas de corrupção, tráfico de influências e de prevaricação o núcleo duro do seu governo - mesmo afirmando que nada lhe pesa em consciência - Costa fez o que tinha a fazer. Se podia não tê-lo feito? Podia, mas não seria correcto.

Em certa medida poderemos até assumir que terá, o Ministério Público, enquanto entidade de garantia da democracia e do Estado de Direito, a responsabilidade de elucidar o país sobre a firmeza das suspeitas e apuramento de factos, uma vez que se nada se vier a provar, estará em causa, uma vez mais, a credibilidade da Justiça, assim como o seu papel na queda de um governo. Não esquecendo a interrogação sobre o motivo pelo qual não foi chamada ao caso a Polícia Judiciária - (será legítimo equacionarmos a desconfiança do Ministério Público sobre a PJ?).

Por outro lado, estamos a falar de um governo profundamente fragilizado, debilitado, descredibilizado e fraturado pelos sucessivos escândalos e casos judiciais, sobre o qual recaem novamente indícios e suspeitas de crime. Não seria isto, por si só, e por envolver as pessoas mais próximas do primeiro-ministro, entre as quais João Galamba a favor de quem intercedeu num acto de oposição ao Presidente da República, motivo para cessar funções?

Certo é que as suspeitas sobre os projetos de exploração do lítio em Boticas e em Montalegre, do centro de dados em Sines e do negócio da produção de energia através de hidrogénio não são uma novidade. São, na verdade, há muito contestados pelas populações através de mobilizações locais e alvo de reportagens jornalísticas por representarem atentados e negócios duvidosos do ponto de vista do interesse público e bem comum. Se houve, sobre estas, tentativa de silenciamento? Talvez. É factual que o jornalismo de investigação – que serve verdadeiramente a causa pública - sempre se apresentou inconveniente aos olhos do poder, sendo alvo de pressões, ameaças e enfrentando sucessivos entraves à divulgação e apuramento dos factos. Um jornalismo assente em valores éticos e princípios com o único propósito de apurar a verdade e informar. (Mas sobre isso é possível ler em crónica anterior).

Quanto ao país, tem por certo o adiamento da formalização da demissão de António Costa para o início de Dezembro – permitindo a aprovação do Orçamento de Estado para o próximo ano - a dissolução da Assembleia da República a 15 de Janeiro de 2024 e eleições legislativas a 10 de Março.

Sobre outras questões: terá o PS tempo para reflectir sobre o que lhe aconteceu antes de eleger um novo secretário-geral? Que alternativa política se afigura mais forte, capaz de enfrentar e governar Portugal com a crise do SNS, a luta dos professores, a crise na habitação, a perda acentuada do poder de compra, os baixos salários e a incapacidade de um país em gerar riqueza? Olharão os líderes e parceiros europeus para nós da mesma forma? Que consequências, em termos de confiança política, enfrentará Portugal?

Quanto a nós, portugueses, que saibamos avaliar o quanto as últimas maiorias se revelaram instáveis, incapazes de negociar soluções em várias questões estruturais, causadoras de permanente desagregação política e displicentes no exercício do poder. Mas que saibamos, de igual forma, ajuizar e ponderar os efeitos da chama rápida que nos incendeia enquanto povo, capaz de nos retirar a lucidez para pensar de forma crítica e racional sobre temas profundos, complexos, fraturantes e geradores de exaltação e contestação, sob pena de sermos – nós próprios – alimento do populismo e radicalismo ideológico que, sob as suas ideias e ideais extremistas, mais não são do que verdadeiras ameaças à democracia.

Porque se há, de um lado, exemplos que vão contra os valores do Estado Democrático, também os há – e muitos – do outro.

Se são mudanças que queremos, não nos esqueçamos de nós. Portugal precisa de cidadãos mais activos e exigentes e não mais reactivos e radicais. 

Este site usa cookies para melhorar a sua experiência. Ao continuar a navegar estará a aceitar a sua utilização.