DEMOCRACIA: A WORK IN PROGRESS

O ano de 2023 está quase a terminar. É chegada aquela altura em que tendemos a olhar para trás, perceber de onde viemos, assim como o que nos fez chegar ao momento presente.

Em termos pessoais – apesar disso ser completamente desinteressante para os meus leitores – este ano foi, à semelhança de 2007, marcado por uma enormíssima perda. Foi também o ano em que o meu filho chegou a uma idade “redonda”, tendo-o comemorado com saúde e muito amor.

Passando para assuntos de relevância e de utilidade públicas, faço uma passagem, se bem que sucinta, por alguns dos acontecimentos (excluindo, sobretudo, os nomes de pessoas conhecidas do grande público que faleceram, assim como intempéries ambientais determinadas pela Mãe Natureza) que tiveram lugar, lá fora e cá dentro, e que exercem, de algum modo, influência na vida de todos nós. Vejamos, pois, mais ou menos ao mês, uma amostra deste “estado de graça”.

Pelo mundo:

·         Janeiro - para além do conflito Ucrânia/Rússia, que continua a bom ritmo, o ano iniciou-se com o afastamento de um líder bizarro, Jair Bolsonaro, que terminou o mandato como Presidente do Brasil, havendo-se iniciado o segundo governo e o terceiro mandato de Lula da Silva;

·         Fevereiro - Joe Biden, Presidente dos Estados Unidos, fez a primeira visita à Ucrânia após o início da invasão deste país pela Rússia;

·         Março - Xi Jinping foi reeleito por unanimidade para um terceiro mandato como Presidente da República Popular da China; o Tribunal Penal Internacional emitiu um mandado de prisão para Vladimir Putin, Presidente da Rússia, por crimes de guerra cometidos na invasão russa da Ucrânia e no rapto de crianças ucranianas; a Indonésia foi removida como sede da Copa do Mundo Sub-20 da FIFA 2023, por haver resistência de algumas autoridades indonésias a receber a selecção de Israel, já que não existem relações diplomáticas formais entre os dois países;

·         Abril - na América Latina, face ao número de casos de violência que envolveram narcotráfico, o Presidente do Equador autorizou porte de armas para civis e decretou estado de emergência parcial; em Mianmar, a guerra civil provocou, pelo menos, mais 165 pessoas mortas na sequência do bombardeio havido no município de Kanbalu, na região central de Sagaing, pela Força Aérea de Mianmar, no decurso das celebrações de abertura de um gabinete administrativo da Força de Defesa Popular;

·         Maio - a OMS declarou o fim da emergência de saúde pública de importância internacional referente à COVID-19 e, no dia seguinte, tem lugar a coroação de Carlos III do Reino Unido, na Abadia de Westminster, em Londres;

·         Junho - cientistas anunciam a criação do primeiro embrião humano sintético sem óvulo nem espermatozoide o que, sendo uma questão complexa, levanta diversas questões éticas e legais; ocorre um naufrágio com cerca de 700 migrantes, de diferentes nacionalidades, no Mar Mediterrâneo, a 80 km da costa grega, sendo considerado uma das maiores tragédias humanitárias na história recente; a Rússia transferiu as primeiras armas nucleares táticas para a Bielorrússia, no contexto da guerra com a Ucrânia; por maioria de votos, o Tribunal Superior Eleitoral declarou Bolsonaro inelegível por 8 anos, reconhecendo -lhe abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação por reunião convocada com embaixadores;

·         Julho – No Afeganistão, desde que os fundamentalistas islâmicos tomaram o poder, as mulheres foram, cada vez mais, privadas de direitos e sujeitas a diversas restrições, de que são exemplo, a segregação sexual em locais públicos, a imposição do véu islâmico ou a obrigação de viajarem com familiares do sexo masculino. Por esta altura, o governo talibã decidiu ainda proibir os salões de beleza para mulheres em todo o país, uma das suas poucas oportunidades de negócio no país; teve início oCampeonato do Mundo de Futebol Feminino de 2023, realizado na Austrália e na Nova Zelândia;

·         Agosto – A Espanha sagrou-se o país vencedor do Campeonato do Mundo de Futebol Feminino de 2023 e ainda um bónus: o caso Rubiales/Hermoso;

·         Outubro - Hamas fez um ataque surpresa contra Israel, provocando centenas de mortos e milhares de feridos, levando Israel a decidir declarar guerra (dia 7);

·         Novembro - Javier Milei, líder da extrema-direita, foi eleito Presidente da Argentina; também os Países Baixos, chamados a eleições, entenderam que, pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial, o maior partido não se situaria no contexto da família dos partidos europeus liberais de centro-direita ou de centro-esquerda, mas antes na extrema-direita:  foi escolhido o partido e o respectivo líder anti-islâmico Geert Wilders, apesar de ainda não ser claro se irá ou não ser primeiro-ministro.

Entretanto, cá pelo burgo:

·         Janeiro – como resultado das demissões do Ministro das Infraestruturas e da Habitação, Pedro Nuno Santos, e da Secretária de Estado do Tesouro, Alexandra Reis, assistimos a uma remodelação do XXIII Governo Constitucional: João Galamba passou a estar à frente do Ministério das Infraestruturas e, Marina Gonçalves, do Ministério da Habitação; apenas um dia após ter tomado posse, Carla Alves demitiu-se do cargo de Secretária de Estado da Agricultura, por estar a ser alvo de suspeitas de crimes de corrupção activa e de prevaricação;

·         Março – 13 militares do NRP Mondego recusaram realizar uma missão de acompanhamento de um navio russo a norte da ilha de Porto Santo, alegando falta de segurança da embarcação, algo que o Chefe do Estado-Maior da Armada, Henrique Gouveia e Melo, classificou como indisciplina;

·         Abril – Frederico Pinheiro,adjunto do Ministro das Infraestruturas João Galamba, foi exonerado do cargo, por estar envolvido na troca de informações divulgada na comunicação social sobre a polémica na TAP. Seguiu-se a “saga” do computador portátil sem autorização para sair do Ministério, resultando em desacatos e em agressões;

·         Maio – João Galamba pede demissão, mas António Costa recusou esse seu pedido, renovando a sua confiança no mesmo, algo que gerou um certo incómodo, assumido publicamente, ao Presidente da República Português e abriu espaço para um conflito institucional;

·         Agosto – Realiza-se em Lisboa a XXXIII Jornada Mundial da Juventude, com a presença do Papa Francisco;

·         Outubro – Foi transmitido pela televisão, o casamento da filha de Duarte Pio de Bragança, Maria Francisca, com o advogado Duarte de Sousa Araújo Martins, tendo garantido a liderança para a estação e o título de programa mais visto do dia;

·         Novembro – o Primeiro-Ministro apresentou ao Presidente da República o seu pedido de demissão das funções, após ser alvo de suspeitas criminais, no âmbito da Operação Influencer, fazendo “cair” o actual Governo Constitucional, e seguindo-se a marcação de eleições legislativas, pelo Presidente da República, para 10 de Março de 2024. Já demissionário, dirigiu-se ao país para pedir desculpas e assumir que não pretende voltar a exercer cargos públicos; decorre a investigação pelo Ministério Público do caso das gémeas luso-brasileiras que vieram a Portugal, em 2019, receber um dos medicamentos mais caros do mundo, tendo havido suspeitas de que isso tivesse acontecido por influência do Presidente da República, apesar de este o haver negado. Coube às gémeas, ainda, a atribuição de duas cadeiras de rodas, topo de gama, avaliadas em mais de duas dezenas de milhares de euros, que a família das meninas não chegou a levantar; os sindicatos que representam os médicos e o Governo continuam sem conseguir um acordo; o endividamento da economia portuguesa voltou a subir; o preço do cabaz alimentar monitorizado pela DECO PROTeste custava, a 22 de Novembro, 231,70 euros;  o recente Congresso Nacional do PSD contou com a inesperada presença do antigo primeiro-ministro e Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, apesar de o mesmo haver assumido não querer "interferir de nenhuma forma sobre as decisões que os órgãos próprios do partido e o presidente possam vir a tomar". Face à perseverança dos jornalistas, recusou desenvolver as suas afirmações, alegando o facto de a mulher estar à sua espera, em casa, para jantar.

Ora, caros leitores, é sabido que no universo, nada é perfeito: a perfeição não existe. Mas, em particular nesta época do ano, urge perguntar: Será que o Pai Natal se zangou connosco? O mundo está a tornar-se, pouco a pouco, um espaço mais autoritário. A democracia está em crise, também na Europa. Existe um desencanto, resultado de um abuso de soundbites, de lugares-comuns e de teorias da conspiração, para além de um abuso de promessas que acabam por não ser cumpridas. Instala-se um verdadeiro pânico, vertido na aclamação de líderes despóticos em muitos países. Por outro lado, a generalidade das pessoas, frivolamente, aparenta haver esquecido o significado de direitos humanos, do princípio da igualdade e de cidadania. Regra geral, preconiza-se uma sociedade preocupada com a inclusão, que exclui aqueles que possam ter comportamentos não inclusivos. As sociedades estão cada vez mais divididas entre vencedores e perdedores. Vulgarizam-se crimes por prevaricação, por tráfico de influências e por corrupção que, de tão habituais, se normalizam. Praticados por quem quer que seja. Como vinga o efémero, as memórias são cada vez mais curtas: um qualquer indivíduo passa muito rápido de “bestial a besta”, ou de “besta a bestial”. Alguns, até atingem rapidamente o estatuto de “salvador da Pátria”! Diria que as emoções ocuparam o lugar da razão, enquanto a divisão e a subtracção enfraqueceram a multiplicação e a adição.

Eis a questão que se coloca: é possível corrigir esta situação? Com mais ou menos cepticismo, de forma mais ou menos provocadora, há quem considere que, chegados a este ponto, a solução passará pela substituição do governo dos políticos pelo governo dos cidadãos, ou seja, pela chamada democracia deliberativa. Outros, mais moderados, defendem um modelo “misto”, mais plausível e real, um meio termo ou um ponto de encontro, entre a democracia representativa e a democracia deliberativa. Não tenho, ao momento, um juízo consistentemente formado, que me permita, com a devida sensatez, discutir o assunto. Talvez, um dia, possa voltar a esta temática.

Mas, a montante dessa discussão, creio ser urgente defender a democracia, de forma diligente e eficiente, assim como procurar alternativas para a voltar a aproximar dos cidadãos.

A todos os meus leitores, Boas Festas e um Próspero Ano de 2024.

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