Dá Deus Templos a quem não tem vontade

Beja dispõe de um dos mais importantes achados arqueológicos ocorridos em Portugal nas últimas décadas. Em 2009, escrevia o DN, que “O templo imperial e o edifício (construído no final do século I A/C., no tempo de Augusto, o primeiro imperador romano)", frisou a arqueóloga [Conceição Lopes], demonstram que Pax Julia "era a mais importante cidade romana" de Portugal, a "grande colónia do sudoeste peninsular" e "a capital do 'Conventus Pacencis'", ou seja, da região político-administrativa e jurídica que ocupava toda a zona a Sul do Tejo do actual território português. Do ponto de vista da justiça, por exemplo, todas as questões entre o Tejo e o Algarve resolviam-se aqui”, explicava a arqueóloga.”

 

Dez anos volvidos, podia ler-se na conceituada revista National Geographic que “aos poucos, emergiu informação que legitima o que Plínio e Estrabão escreveram: no último quartel do século I A/C., Pax Iulia seria uma colónia romana, pelo que os seus cidadãos gozariam do mesmo estatuto dos cidadãos de Roma. A monumentalidade dos seus edifícios, agora vislumbrados, comprova-o.”

 

Desde que foi sendo sucessivamente enterrado por várias camadas de história, ao longo de séculos de crescimento da cidade, o imponente Templo Romano, e os igualmente importantes edifícios adjacentes, só voltaram a ver a luz do dia pela mão de Abel Viana.

O arqueólogo vianense, que tanto deu a Beja e ao Baixo Alentejo na valorização do seu património, registou a primeira nota sobre o complexo em 1939, aquando da abertura dos caboucos para a construção do reservatório de água de Beja, entretanto demolido.

 

Nesse final dos anos 30 do séc. XX, Abel Viana identificou um "grande edifício, que interpretou como o templo romano de Pax Julia". Contudo, os vestígios foram tapados e só no final dos anos 90, e pela responsabilidade da arqueóloga Conceição Lopes, do Instituto de Arqueologia da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, avançaram as escavações no local, para "tentar ver o que Abel Viana tinha identificado".

 

E assim se iniciou um prolongado estudo arqueológico e um delicado trabalho de investigação em torno do Fórum Romano de Pax Julia. Projecto que se estendeu até bem perto dos nossos dias, perfazendo quase três décadas de estudo. Décadas de dedicação a uma causa, com avanços e recuos, ora com financiamento, ora sem, com muitos meses sob o sol escaldante de Baixo Alentejo, com alunos e voluntários, com jornalistas e estudiosos de todo o mundo, com a polémica sobre se desmantelaria ou não o depósito de água… enfim, com o natural calvário de quase todas as coisas em Portugal.

 

Pela importância de um e de outro, de Viana e de Lopes, e sobretudo com a certeza de que sem a existência de cada um deles o Fórum Romano de Beja permaneceria ainda hoje soterrado, gosto de considerar Abel Viana e Conceição Lopes como os “pais do fórum”. Na realidade foi Abel que o deu à luz, e foi Conceição que o ensinou a andar.

 

A arqueóloga, como refere a Rádio Voz da Planície (RVP) em 22 de Janeiro de 2019, “é docente da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e coordenadora do Centro de Estudos de Arqueologia, Artes e Ciências do Património, tendo concluído o Doutoramento em 2000 com a dissertação “A cidade romana de Beja. Percursos e debates acerca de Pax Iulia”. Ao longo de 30 anos, realizou escavações arqueológicas e trabalhos científicos em Beja, Vidigueira, Serpa, Moura, entre muitos outros em Portugal e no estrangeiro. Em Beja, dirigiu os trabalhos arqueológicos junto da praça da República e tem divulgado, um pouco por todo o Mundo, o “Projecto de Arqueologias das Cidades de Beja”.

 

Graças ao trabalho iniciado por um, e desenvolvido por outro, podemos dizer que, desde 2021, sabemos que o grande edifício que foi sendo designado por Edifício Público da Idade do Ferro, é composto por uma estrutura tripartida definida por dois ‘compartimentos’ rectangulares de 3,48m X 1,10m, enquadrando um espaço central aberto, que se prolonga para SO, datado de entre o final do séc. V e a primeira metade do séc. IV A/C, tendo posteriormente, entre o final do séc. II e o início do séc. I A/C, recebido obras de manutenção. Trata-se de um edifício público, com função sacra, num espaço de santuário, o qual determina o enquadramento posterior desta infraestrutura no contexto da instalação da cidade romana.

 

Chegados a este ponto, pode parecer que tudo isto é já demasiado impressionante e revelador da colossal história de uma ancestral Beja rica, poderosa e influente. Mas há mais. Para além das ruinas do Templo Romano, paredes meias com o mesmo local, está  a antiga Casa da Moeda de Beja. De acordo com a autoridade máxima de numismática em Portugal, e presidente da Sociedade Portuguesa de Numismática, Professor Rui Centeno, “tanto a existência da Casa da Moeda, quanto o material ali encontrado são excepcionais”. Mas, mais uma vez, o mesmo problema: a falta de fundos para a continuação dos trabalhos arqueológicos da escavação, consolidação, estudo, catalogação, etc., dos materiais ali encontrados.

 

De acordo com informação documental recolhida no Arquivo Distrital de Beja, na Torre do Tombo, na Universidade de Coimbra e na Biblioteca Nacional de Portugal, relativa à concessão real da Casa da Moeda da cidade de Beja, sabemos que a mesma laborou entre os séculos XV e XVI. Em 9 de Agosto de 2012, o Jornal Público noticiava que “de entre as referências à existência de uma Casa da Moeda em Beja, um documento depositado na biblioteca do Museu Nacional de Arqueologia expressa a concessão feita pelo rei D. João III ao vedor da casa real: "A quantos esta minha carta virem faço saber que Ruy Lopes, do meu conselho e vedor da minha casa, me disse que eu lhe tinha dado licença para descobrir em termo de minha cidade de Beja uma mina de azougue e cobre, e por quanto no descobrimento da dita mina e tirar dos metais dela havia de fazer muita custa e despesa, me pedia que lhe desse licença que do dito cobre pudesse mandar laurar (cunhar) moeda de ceitis na dita cidade, numa casa que para isso construíra e fará à sua custa e despesa (...)".

 

As escavações foram iniciadas, os resultados estavam a ser fantásticos, mas um contencioso entre a edilidade bejense e a empresa de arqueologia encarregada dos trabalhos obrigou a parar a obra em 2015. À data de hoje, segundo creio saber, não há intenção do actual executivo camarário de avançar com os trabalhos nesta extraordinária estrutura. Com o avanço dos estudos (mas, sem mais escavações), por parte da arqueóloga Conceição Lopes, chegámos a uma história fantástica que bem poderia preceder, pela ousadia e originalidade criminal, à de Alves dos Reis. O detentor da licença de cunhagem de moeda, o vedor da Casa Real, Ruy Lopes, enganou o Rei e cunhou outras moedas que não aquelas para as quais estava autorizado. Este, segundo a arqueóloga, é um relato que, “do ponto de vista das políticas económicas relacionadas com os descobrimentos, e com D. Joao III, representa uma novidade histórica e um desafio a futuras investigações, em diversas áreas.”

 

Entretanto, a 24 de Novembro último, realizou-se no Porto  um Congresso científico  internacional onde foram apresentados publicamente os primeiros estudos integrados sobre a Casa da Moeda de D. João III, em Beja, com a presença de doutos especialistas em Numismática, como é o caso de Maria da Paz Garcia Bellido y García de Diego, destacada Professora Catedrática da Universidade Autónoma de Madrid e especialista mundial em Numismática.

 

Perante a perplexidade manifestada pelos presentes relativamente à estagnação dos trabalhos na Cada da Moeda há 8 naos, e depois de explicada a razão (impossibilidade de captação de financiamento para uma escavação tão especializada), Maria Bellido propôs-se enviar ao ministro da cultura um documento, informando-o da responsabilidade que Portugal tem em valorizar este património, e manifestando disponibilidade para promover este estudo através investigadores espanhóis, caso Portugal não quisesse avançar.

 

A própria a Imprensa Nacional Casa da Moeda, bem como o Banco de Portugal disponibilizaram de imediato 20.000 euros para se avançarem com os trabalhos. Essa quantia seria transferida para a Câmara Municipal de Beja, no quadro de um protocolo a estabelecer entre as várias instituições participantes no processo. Esta mesma proposta, com pedido de reunião, foi endereçada à CMB no dia 30 de Novembro. Após reforço na tentativa de resposta, e até hoje, a edilidade nunca se dignou a responder.

 

Estou certo que tal sucedeu por puro esquecimento (o que não deixa de ser grave), porque quero acreditar que a C.M.B quer apenas o melhor para a valorização da cidade e para os seus munícipes. Sobretudo no que diz respeito a um património único, que é urgente valorizar, estudar aprofundadamente, o que implica a continuação dos trabalhos de escavação em todo o perímetro do Fórum Romano/ Casa da Moeda para que possa ser feito um trabalho sério e altamente especializado de investigação. Mas também um projecto museológico desses mesmos espaços, únicos em Portugal, e de raridade e interesse incalculáveis em toda a Península Ibérica, e mesmo na Europa. Não basta ficar com o que já se conhece e elaborar um projecto apressado e pouco estruturado com recurso aos uns passadiços.

 

É necessário contar uma história. É preciso que um conjunto de pedras deitadas no chão ganhem vida, explicando de forma volumétrica e entendível o que ali está, as suas idades, os seus propósitos, a sua história e os seus porquês. Para que quem por lá passe saia a entender a história do que viu.

 

Por outro lado, é urgente iniciar a classificação da Casa da Moeda como Património Nacional. A própria Associação de Defesa do Património de Beja deveria estar envolvida com pareceres científicos relativamente a todo este acervo, e à sua valorização e musealização. A qualificação séria, honesta, partilhada e comprometida de todo este perímetro histórico levaria à cidade um turismo culto, académico, informado, com elevado poder de compra, e isso colocaria Beja num patamar que é seu por direito próprio, enquanto foram grandes os seus governantes, há demasiados séculos.

 

Ainda vamos a tempo. Estamos sempre a tempo. Evidentemente seria crucial continuar as escavações. Isso permitiria mostrar mais mas, sobretudo, perceber e conhecer melhor a história de todo este valioso complexo. Separando o projecto (pobre) da sua valorização (obrigatória) pode, de forma inteligente, proteger-se o sítio e ser elaborado um bom programa de visitas (que, aparentemente, não existe; aliás, à excepção do passadiço não tenho conhecimento de que história será contada aos visitantes, nem qual o conteúdo desse guião).

 

Uma das hipóteses que me parecem mais acertadas seria manter os trabalhos de escavação ao mesmo tempo que decorrem as visitas. A oportunidade de uma visita orgânica, com centro interpretativo, com museu, com uma história séria e apelativa, mas ao mesmo tempo com o trabalho sempre fascinante dos arqueólogos a fazer parte da experiência do visitante. Não tenho a mínima dúvida de que este seria um complexo histórico vivo, que tanto contribuiria para a tão propalada revitalização do centro histórico de Beja.

 

E há que não esquecer outro facto importante, cujo desenvolvimento deixo para outra ocasião: muitos arqueólogos, historiadores e investigadores sustentam a forte possibilidade de Beja ter sido a célebre Conistorgis, a capital dos Cónios, povo anterior ao século VIII A/C, e contemporâneo do início da romanização, quando foram integrados na Província Romana, depois de a sua capital ter sido destruída pelos Lusitanos, primeiros aliados do império de Roma. Habitavam o actual Baixo Alentejo, o Algarve e parte da Andaluzia. Conistorgis, que em cónio, significaria "Cidade Real" é referida por Estrabão, historiador, geógrafo e filósofo grego e contemporâneo de Augusto, na transição da Era. Sob as suas ruínas terá sido erguida Pax Julia. Mas para que se possa passar de uma hipótese para uma certeza é obrigatório aprofundar estudos; escavar sempre que haja oportunidade e fazer um trabalho de investigação altamente especializado.


Tenho a convicção de que a cidade beneficiaria muito com um projecto integrado, onde além do estudo de período romano – que obviamente é de fulcral importância – se valorizassem outras épocas e civilizações (que adoptaram Beja como sua cidade, tal como hoje é nossa), com especial destaque para a cultura Islâmica. Mas que se integrassem esses estudos com outras valências, como a Casa da Moeda, e que se pensasse o rico e vasto património da cidade de forma interligada entre todos estes factores históricos. Indo ainda mais longe, um plano de recuperação da zona histórica pacense, baseado em todo conhecimento que existe, poderia contemplar variáveis como o conhecimento da casa do Boticário de D. Brites, na Rua do Touro, ou o uso dos magníficos azulejos de Beja, por exemplo, e trazer a história e a arte da cidade para um plano de excepção junto dos seus habitantes e, claro, ao nível dos circuitos do turismo cultural de excelência. Assim haja vontade.

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