Caldas da Rainha de Beja

É, possivelmente, um dos grandes e imperdoáveis esquecimentos sobre as históricas figuras de Beja que teima em manter-se na cidade. Uma personalidade que merece ser recordada, estudada e nobilitada. Não por nenhum género de regionalismo bacoco. Mas porque se trata de uma figura maior de Portugal, cujas conquistas merecem ser conhecidas. Falo de uma mulher maior, de compaixão ímpar, da cultura, e detentora de interesses únicos de elevação, e que por isso marcou a história no nosso País. Foi ela a criadora de um sistema que, ainda hoje, mais de 500 anos depois, está na ordem do dia, por exemplo, a propósito da sustentabilidade do nosso SNS, e que se chama terceiro sector, em contraste com o primeiro, composto pelo Estado e o segundo, que compreende os privados. De acordo com o Relatório Final de Licenciatura em Gestão de Rute Rita Pereira Nogueira, do Instituto Politécnico de Bragança, “o designado terceiro sector é constituído por associações e entidades sem fins lucrativos que executam serviços e actividades de utilidade pública. Ou seja, as organizações deste sector (…) prestam serviços que dão apoio a crianças, jovens e idosos, a famílias, à formação profissional dos cidadãos, entre outros.”

Parte fundamental deste chamado sistema é composto pelas Misericórdias, Casas que desenvolvem um papel imprescindível para as populações mais necessitadas de norte a sul do País. Segundo o sítio da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, “a 15 de Agosto de 1498, no ano em que os navegadores portugueses atingiam a Índia, surgia a primeira misericórdia portuguesa em resultado da especial intervenção da Rainha D. Leonor, e com o total apoio do Rei [e seu irmão] D. Manuel I, [Duque de Beja].” O aumento da actividade marítima trouxe, nomeadamente, a Lisboa muita gente vinda do interior do País, em busca de trabalho e melhores condições de vida na indústria dos descobrimentos. Contudo as cidades estavam longe de estar preparadas para os receber, sendo que as suas parcas infraestruturas eram já de exígua qualidade mesmo para os seus habitantes, o que provocou uma onda de doenças, mendicância, e ruas transformadas em antros de promiscuidade e absoluta ausência de condições de higiene. Perante esta complicada situação, a Rainha bejense, já viúva do Príncipe Perfeito, D. João II, empenha-se na criação de uma “Irmandade de Invocação a Nossa Senhora da Misericórdia, na Sé de Lisboa.” É desta forma, e pela sua mão, que nasce uma das mais antigas e essenciais instituições nacionais: as Misericórdias.

Mas vamos regressar ao início. D. Leonor, ilustre rainha bejense, nasceu na - também ela - Rainha da Planície, no dia 2 de Maio de 1458. A Princesa Perfeitíssima foi a fundadora das Caldas da Rainha. Foi a Rainha de Beja a responsável pela edificação do grande Hospital Termal, em torno do qual se desenvolveu primeiro aldeia, depois vila, e finalmente cidade, que hoje se conhece justamente por Caldas da Rainha. Da Rainha de Beja.

 

Da obra do Conde de Sabugosa, “A Rainha D. Leonor”, edição da Livraria Sam Carlos,

Lisboa, consta uma introdução que é o fiel retrato da Rainha alentejana: “este simples nome ‘D. Leonor’ sem qualquer outro atributo, é suficiente para designar uma das figuras de mais nobre relevo na galeria extensa das grandezas de Portugal. Outras houve que se chamaram como ela. Mas para as indicar há que dizer-se: Leonor Teles, Leonor de Aragão, Leonor de Áustria (…) Mas a Rainha D. Leonor é só uma. O seu vulto é inconfundível. Quando nela se fala, é certo, acrescentam uns: a das Misericórdias; outros: a do Hospital das Caldas; alguns, ainda: a Fundadora da Madre de Deus, a Protectora de Gil Vicente, a Introdutora da Imprensa em Portugal.”

Sobre a sua infância, pais, e restantes irmãos, Isabel dos Guimarães Sá, no seu livro “De Princesa a Rainha-velha, Leonor de Lencastre”, da colecção Rainhas de Portugal, uma edição do Circulo de Leitores, acrescenta que Leonor foi uma entre “muitos irmãos. (…) Isabel, Catarina, João, Diogo, Duarte, Dinis, Simão e, finalmente, o irmão mais novo, D. Manuel”, futuro Rei de Portugal. E que a educação de todos eles nunca foi descurada pela Infanta D. Brites. “Vários documentos comprovam que a infanta” todo-poderosa e também nascida em Beja, “D. Beatriz, sua mãe, esteve atenta a tudo quanto pudesse assegurar e melhorar o futuro dos filhos na sua relação com a Coroa. Afinal, eram filhos do número dois na sucessão ao trono (…) D. Beatriz viveu “rica e poderosamente, em Beja, nos seus últimos anos (onde morreu), no seu Convento da Conceição, depois de uma vida cheia de reveses. Tal como a filha, temos dificuldade em imaginá-la passiva perante as reviravoltas do destino.” Eram, pois moldadas da mesma massa, estas duas excepcionais figuras femininas, centrais na nossa história.

A obra A Rainha D. Leonor - Exposição da Fundação Calouste Gulbenkian no Mosteiro da Madre de Deus, Lisboa, Dezembro de 1958, define a Rainha do bem como sendo “uma alma dotada do mais puro amor ao próximo e um espírito devotado aos mais belos empreendimentos artísticos e culturais. Se os hospitais, as misericórdias e as mercearias que criou são o fruto do seu humanitarismo, se as igrejas e os mosteiros que fundou são o produto do seu profundo sentimento religioso, o interesse que revelou pela introdução da imprensa em Portugal, o carinho com que patrocinou o teatro de Gil Vicente, e a protecção dada aos nossos pintores, lavrantes [artistas cinzeladores que trabalham em ouro e prata] e iluminadores, revelam o elevado grau da sua sensibilidade e da sua cultura humanista e artística.“

Sobre o seu importante contributo para o desenvolvimento da imprensa no nosso país, a Gazeta das Caldas, no artigo “D. Leonor e a Imprensa”, na sua versão digital gazetadascaldas.pt/cultura/d-leonor-e-a-imprensa/, de 2019, refere, baseado na obra “D. Leonor de Lencastre Grande Senhora do Renascimento”, lançado no aniversário dos 500 anos da fundação da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, em 1998, destaca que “à Rainha mecenas também a Imprensa ficou a dever inestimáveis serviço. Portugal foi um dos primeiros países a introduzir a tipografia. Essa grande invenção de Gutemberg, encontrou uma desvelada protectora. Foi ela que animou – como diz Ramalho Ortigão – “os primeiros ensaios de tipografia em Portugal, fazendo imprimir sob os seus auspícios, a Vita Christi, ainda no séc. XV”.

A jovem e predicada Leonor ascende ao trono do reino em 1481, através do casamento com o seu primo João II de Portugal, o Príncipe Perfeito. Também a Rainha, devido à sua conduta exemplar, e detentora de arreigadas virtudes humanitárias, foi denominada por muitos historiadores de "Princesa Perfeitíssima". Segundo a página de internet RTP Ensina, no vídeo intitulado a ”Lenda das Caldas da Rainha”, a Rainha era, também, e ”carinhosamente chamada de ‘pelicano real’ por tirar do próprio peito para dar aos pobres”.

Quem goza de uma historiografia antiga e densa, como a nossa, sabe que jamais será seguro falar ou descrever como certezas dados seculares. Desta forma, como em tantos outros casos, conta-se a História socorrendo-nos de uma lenda que se encontra a miúde em vários artigos, e com algumas variações. Foquemo-nos no seu essencial: certo dia do ano da graça de 1484, narra a lenda, dirigindo-se para o Mosteiro da Batalha, onde teriam lugar as solenidades fúnebres em memória de D. Afonso V, pai de D. João II, e tio e sogro de D. Leonor, e depois de deixar Óbidos, a rainha avistou um grupo de populares que se banhavam numas poças de água de odor intenso. Curiosa, a monarca fez parar o cortejo e indagou junto dos populares o que faziam naquelas águas mal cheirosas. Responderam-lhe os humildes banhistas que aquelas águas possuíam poderes curativos e que, banhando-se nelas, se lhes aliviavam as maleitas.

A soberana de Beja, interessada, aproximou-se dos charcos e comprovou, ela própria, a veridicidade dos testemunhos populares, banhando-se nessas mesmas águas. Ao que consta, também D. Leonor tinha os seus padecimentos de saúde, pelo que, depois do retemperado banho, das águas emergiu restabelecida das suas apoquentações físicas. D. Leonor mandou chamar da Corte uma série de especialistas com o propósito de que as propriedades daquelas águas fossem analisadas. E este facto bastou para a tomada da decisão real: no ano seguinte, erguer-se-ia naquele mesmo lugar um hospital termal para atender todos aqueles que nele se quisessem tratar. Daí até à construção daquele que muitos acreditam ser o primeiro Hospital Termal do mundo foi um pequeno passo, tendo D. Leonor custeado a construção da obra. A benfeitora ditou, ainda, que a instituição se destinasse a tratar gratuitamente os pobres e desfavorecidos do reino.

Para apoiar a construção do Hospital, a rainha fundou uma pequena povoação com trinta moradores, dando-lhes como benefícios a isenção de vários impostos. E assim, com essa trintena de pessoas, sabe-se lá se parte delas oriundas da sua Beja natal, D. Leonor faz nascer a povoação das Caldas de Óbidos. Com a morte de D. João II, em 1495, ascende ao trono o irmão de D. Leonor, D. Manuel, duque de Beja. Em 1512, o Rei D. Manuel I atribui o foral de vila à já denominada Caldas da Rainha o que lhe consagraria um rápido crescimento. Leonor viveu o apogeu dourado da expansão portuguesa, quando Portugal ocupou o lugar de potência mundial. Ainda assim o luxo e ostentação não deslumbraram o seu firme espírito bejense e a rainha tudo fez em favor dos mais desvalidos. Para eles criou as misericórdias e hospitais, fundou conventos, e patrocinou várias promoções artísticas e culturais.

Na obra Textos Universitários da Ciências Sociais e Humanas - A Rainha D. Leonor (1458-1525) - Poder, Misericórdia, Religiosidade e Espiritualidade no Portugal do Renascimento, de Ivo Carneiro de Sousa (edição Fundação Calouste Gulbenkian, Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Ministério da Ciência e do Ensino Superior), a Rainha Perfeitíssima é descrita como tendo tido uma vida que decorreu “demoradamente ao longo de quatro reinados - de D. Afonso V a D. João III -, sendo igualmente contemporânea dos mais variados acontecimentos que marcaram, pelo menos para as nossas memórias e curiosidades de hoje, essa espécie de Portugal mítico, feito de ouro e descobertas, expansão e esforço.” Tais condições de excepção nunca lhe toldaram as prioridades sobre as causas que escolheu defender, e pelas quais lutou toda uma vida: a cultura, a espiritualidade e o auxílio aos desvalidos. Foi assim em Beja, e foi assim nas Caldas da Rainha, as duas cidades que marcou de forma indelével.

Em ambas as urbes figuram estátuas consagrando a Rainha cujo coração foi tocado pelas suas benévolas raízes bejenses. A das Caldas foi inaugurada em 1935, e é da autoria de Francisco Franco; a de Beja, em frente ao museu Rainha D. Leonor, foi esculpida por Álvaro de Brée, e inaugurada em 1958.

Por todos estes motivos, que atam umbilicalmente Beja a Caldas da Rainha, deveriam, e poderiam, por tributo ao passado, observância do presente e perspectiva do futuro, ambas as cidades ser geminadas e promoverem-se histórica, cultural e turisticamente em conjunto. Porque as Caldas são do Oeste. Mas a Rainha, essa, é de Beja.

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