Criar é transgredir. E na Arte há o dever de o fazer.

Veículo ousado de ideias revolucionárias, ou voz na luta política, social e económica, com vista à transformação, a Arte tem liderado movimentos e marcado gerações, através do seu discurso transgressor, socialmente provocante.

Bom exemplo disso é a década de 70, marcada pelo movimento "punk rock", que abarcava música, moda e comportamento.

Imperavam, na época, o tédio cultural e decadência social, o descontentamento, o pessimismo e o desconforto necessário à transgressão dos valores políticos vigentes, assim como a provocação moral e cultural.

O niilismo e a agressão artística directa, o sarcasmo e a ofensa ao socialmente instituído, culminaram numa Era criativa marcante e determinante, onde a inclusão de mulheres e homossexuais passava a ser artisticamente aceite, embora mal vista socialmente.

O movimento globalizou-se e dele nasceram outros, mais ou menos progressivos, igualmente transgressores e transformadores, que continuaram a marcar as décadas seguintes.

Por ser, talvez, ténue a linha entre o significado atribuído e o conceito, a palavra transgredir rapidamente se confundiu com delinquência, bandidagem ou com o ser-se fora-da-lei. Rótulos que vão muito além de experiências de vida, de riscos, excessos, traumas e dramas pessoais, quantas vezes tidos como propulsores da criação. A inquietação e o caos, a obscuridade, por vezes, a dor traumática, a experimentação, as metamorfoses mais árduas e sofridas; uma transgressão comportamental transversal a profissionais de todas as áreas, contrariamente à transgressão artística, capaz de abanar socialmente as nações.

Na viragem do século, talvez tenha sido o POP quem mais trespassou e confrontou, conseguindo trilhar um caminho onde tudo lhe foi permitido. A globalização, a digitalização, as transformações sociais e os movimentos a elas associados ditaram novas normas e lutas, pedindo às vozes que se levantassem. O POP, assim como o Rock em décadas anteriores, assumiu-se como estilo de vida e foi palco, no seio social, da emancipação, nas suas diversas vertentes.

Contudo, apesar da nossa resistência e difícil aceitação, tudo finda, se esgota, se dilui e perde sentido. O mundo ocidental, tal como o conhecemos hoje, já conquistou a emancipação que havia para conquistar, caminhando agora para a devassidão e exagero. O que não é mais do que um sintoma de estagnação e esgotamento, também ele criativo.

Por outro lado, a "compra de identidades" e receitas de sucesso, arrastam-nos para uma hegemonia artística sufocante. “É a máquina a funcionar” - dizem-me.
“Isto tem que levar uma volta” - penso.

Tudo me parece idêntico. Nada me surpreende, apesar de ainda se fazer boa música e boa literatura, as temáticas, os registos, as ideias, as amarras.... o excesso do igual.
Nas livrarias multiplicam-se os títulos de autoajuda, as enésimas fórmulas para o sucesso, os métodos mais eficazes para atingir a felicidade, os romances sem história e os best-seller de dramas conjugais. Conjuntos de páginas ocas, limitadores do pensamento, do progresso, do conhecimento e da mudança de paradigma.

Hoje, a transgressão e a intervenção, dois dos grandes motores da história, deram lugar à contestação e à exibição, sobretudo digital. A moda talvez tenha sido a única arte capaz de prosseguir, disromper e progredir. Muito do que a música sempre foi capaz de fazer - e deixou de ser - através dos movimentos e correntes das épocas, da atitude e do visual, da filosofia associada aos estilos e bandas, através dos quais se expressava identidade, envolta numa cultura dinâmica e expansiva, disruptiva e transformadora, tanto quanto ameaçadora e provocadora, capaz de rasgar sistemas e máquinas.

Foram Eras pautadas pela reinvenção e necessidade de rebelião, mas também pela preocupação de que a música não fosse só uma canção feita à medida da rádio, mas que fosse, sobretudo, um marco contra o bolor dos valores vigentes e um veículo de união e transformação social.

Todos os movimentos de cancelamento actuais se têm verificado altamente bloqueadores da criação, tal como as ideias conservadoras e os novos ideais sociais. Não há espaço, predomina o sufoco, a repressão, o dedo apontado porque tudo é ofensa moral e há um lugar certo para cada um e para cada coisa.

Por outro lado, assistimos à comercialização da imagem da Arte, ou da imagem por trás dela, numa Era instantânea que obriga à constante presença digital para que não se seja esquecido. As visualizações, os likes e os seguidores ditam ícones e êxitos. Tenta seguir-se o que de maior impacto as redes revelam, copiando modelos artísticos, estilos de vida, seguindo tendências comerciais, ousando pouco e, mesmo assim, necessitando de passar no teste das massas. É já tudo pouco surpreendente, pelo contrário, demasiado semelhante e sem a magia visceral da disrupção.

Tudo isto é contraproducente. Tudo isto é oposto à criação. Contudo, tudo isto, se aliado aos tempos que vivemos (de degradação política, económica e social) é material suficiente para incitar a transgressão, o confronto, a intervenção e provocação do sistema. Porque uma nova Era virá. Vem sempre. E já tarda.

 

 

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