Carta a Mariana

A Associação Arruaça, de Beja, está a solicitar trabalhos escritos, sob o tema “As cartas que Chamilly não escreveu”, com o objectivo de as compilar em livro. Os interessados deverão enviá-las para a Associação até 30 de Abril. No ano em que passam três séculos sobre a sua morte, a Arruaça pretende que, “finalmente, cheguem a Mariana ‘As cartas que Chamilly não escreveu’. Esta é a minha.

Paris, 24 de Dezembro de 1714

Mariana. Imagino que não esperarias, agora, esta missiva minha. Mas sinto que chego aos últimos suspiros deste corpo gasto. E não posso partir deste mundo sem te dizer um punhado de coisas. Sei que vives ainda no Convento, pois disso cuidei de me informar. Tenho de te pedir tantas desculpas. Eu queria voltar. Sempre quis. Sim, no cavalo branco em que me esperavas. Chegou a estar arreado com os melhores cabedais e com hora de partida agendada. Era o mais possante de toda a unidade.

Mas o Rei, sempre o Rei... E o exército, e as campanhas, e as alianças, e as conquistas foram adiando o momento vezes sem conta... O Rei Sol só nuvens me trouxe. Considerei, ainda assim, que seria eternamente jovem, e que não passaria de uma questão de tempo ir buscar-te a Beja. Passar novamente aquela porta, dessa vez como herói, não de guerra, mas de amor. Saberia que me esperarias na varanda donde se avista Mértola: as minhas saudosas Portas de Mértola. Que voltaria a cruzar, contigo, ambos no dorso de um forte ginete de uma cor qualquer, para não mais voltarmos.

Ao invés de estes actos garbosos, nada fiz. Nem uma simples e digna resposta às tuas rúbeas cartas fui capaz encher de letras, com o mínimo de honraria. Nunca me consideraram possuidor de dotes de intelecto. E não o desminto. Prova disso é esta minha pobre verve, sobretudo se comparada com os teus dotes de escrever música com palavras. Na vida que agora se arrasta, em agonia, para o vazio, apenas possuí mestria em duas artes. Na da guerra. E na de amar-te. Lamento apenas ter sido sucedido na primeira, pois que na segunda fui um humilhante derrotado.

Das seis cartas que me enviaste, guardo apenas uma. Como é possível não ter dado resposta ao amor que me chegou escrito em linhas caligrafadas com o teu próprio sangue? Quanta dor não te terá provocado obter essa tinta ardente, subtraída do teu esquálido corpo? Depois de teres visto morrer o nosso filho, Mariana. Que desgosto. Um Alcoforado de Chamilly. Quão ignóbil fui! Essa carta acompanhar-me-á até desfazer-se juntamente com os restos dos meus ossos doídos. Está escondida dentro do forro do jaquetão que usarei no meu último dia.

As demais cartas, confesso, mortificado e penitenciando-me, entreguei-as ao vil Claude Barbin, depois de muita insistência da parte deste, sabendo da nossa história que, numa noite de muito champanhe, acabei por deixar escapar. Que façanheiro fui, meu amor. Ainda que sabendo não a poder obter, suplico-te por desculpa. As mesmas cartas, a tua letra, os teus sentimentos e toda a dor que te provoquei, e que carregaste durante anos foram depois passadas ao Gabriel Joseph de Lavergne, o Conde de Guilleragues. Foi ele que as traduziu – e sem metade do sentimento que nelas depositaste, e cheias de cortes e muitos erros – para o francês. O Claude enviou-me um exemplar, ainda em 1669. Recordo as minhas mãos trémulas na sua leitura. Que falta de ar ao sorver cada linha que, apesar de todas as mutilações, ainda era tua. Revivi o teu olhar; o teu quarto, o cheiro das velas dos corredores do Mosteiro, o eco húmido dos nossos silêncios sufocados…Li-o apenas uma vez, e depois arderam as suas páginas na fogueira da minha vergonha.

Como fui capaz… inebriado pelas medalhas, títulos e louvores que fizeram de mim um herói deste país, achei que podia tudo. Inclusivamente violar o mais sagrado sentimento que tinha experimentado na vida. De que me vale tudo isso, hoje? Sei bem o que sofreste com a minha desonra. Que eu o sofra em dobro no pouco tempo que ainda me resta! As duas cartas que te fiz chegar não levavam mais do que meia dúzia de linhas escritas à pressa porque derramei nelas toda a minha frustração. Castigando-te com letras vazias tentava despertar-me para o teu sofrimento. Mas nem isso foi mais forte do que a minha desonestidade. Desculpa, Mariana.

Sei que, para além do que padeceste com a minha ausência, e com filho que perdemos, a isso se juntou a ira de teu pai e de teus irmãos. O livro com as tuas cartas depressa chegou aí. Roubei-te a felicidade e ofereci-te a vergonha. Como poderei redimir-me destes meus hediondos pecados? Surgem, agora, por aqui, novas que dão conta de que a autoria das cartas não é tua, mas do patife do Guilleragues. Tamanha desfaçatez! Para além de traduzidas levianamente, ainda se arroga ao direito de ficar com a fama dos sentimentos que são teus. Nossos! Honestamente não sei se será para ti melhor assim. Por um lado desobrigas-te do vexame. Contudo, e por outro, assistes ao furto da tua intimidade tão só com o fito da fama e do dinheiro por parte do usurpador. Tivesse eu forças, ainda. Mas já para nada servem as minhas antigas façanhas. Definho entre paredes. Ironia da vida que te confinou ao mesmo fado, na clausura que te aprisiona. Se bem que por uma vida inteira. A que eu, desprezivelmente, renunciei.

Nunca mais amei na vida. Casei-me, é certo, mais por imposição social, do que por palpitação provocada por algum tipo de afecto. Disso resultou a minha vontade de não constituir prole. Antes deste meu casamento de farsa, e depois de saber da morte do nosso varão, tive, porém, uma filha. Marie. Metade do teu nome. A única maneira que encontrei, no silêncio da minha oprimida angústia, de honrar o teu sofrimento e castigar a minha cobardia. Metade do teu nome. Tu. A metade de nós que permaneceu fiel ao amor que ambos jurámos.

Desculpa a minha letra, Mariana. Mesmo que não me doessem os ossos dos dedos que já custam a segurar na pena, mesmo que estivesse são, nunca a minha letra se assemelharia à obra de arte que é a tua. Jamais vi uma tão delicada e esmerada. Estou cansado e cheiro o fim, Mariana. É Natal. Ironicamente, o meu nome. Parece um desígnio dos Deuses ser justamente na época que exalta o nascimento, que mais sinto a morte. Velho, doente e gordo. Cheio de comendas. Mas despido de amor. Que deixei aí, contigo, em Beja.

Adeus, Mariana.

Amo-te.

Noël

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