A precariedade como condição social

O trabalho é o principal fator de inclusão social. Desde logo porque confere um rendimento, um conjunto significativo de direitos sociais que a essa condição estão associados, (há que lhe chame benefícios ou até regalias, nos países mais desenvolvidos continuam a denominar-se direitos), mas também um estatuto e reconhecimento social.

A prática de uma atividade profissional desenvolveu-se na Europa Ocidental e no pós-segunda guerra mundial, num quadro de alguma segurança relativamente ao vínculo laboral, assente num relativo equilíbrio de forças entre trabalhadores e entidades patronais. Nos países verdadeiramente desenvolvidos, como a Suécia ou a Dinamarca, o essencial desse modelo continua em vigor. Na Alemanha, por exemplo, as empresas com um determinado número de trabalhadores são por lei obrigadas a ter um seu representante nos órgãos de gestão, palco e entre outras decisões, da estratégia comercial, dos aumentos salariais e outros direitos dos trabalhadores, e, imagina-se, dos salários dos gestores.

Em sentido oposto, nos países com democracias mais frágeis, nomeadamente as do sul da Europa de que Portugal é um infeliz exemplo, e onde o liberalismo aos poucos tem avançado silenciosamente, o primado do trabalho como fator de inclusão social tem vindo a ser desmontado. Primeiro alterou-se o vocabulário: os trabalhadores passaram a denominar-se de “colaboradores”; o desemprego como “oportunidade” e “desafio”; a precariedade, sobretudo dos jovens, como “sinais dos tempos”, e muitos negócios dúbios do ponto de vista da legalidade, por vezes com fugas ao fisco e á Segurança Social, como “exemplos de empreendedorismo”. Depois foi alterada, progressivamente, a Lei do Trabalho que, entre outros aspetos, tornou os jovens eternos aprendizes num regime legal de “trabalhadores à experiência”, com salários raramente superiores ao Salário Minino Nacional - SMN.

Um dos aspetos que mais tem contribuído para a precarização social de milhares de trabalhadores e respetivas famílias, são as conhecidas empresas de trabalho temporário, onde proliferam os contratos de trabalho “a termo certo” ou mesmo “a termo incerto”, em geral de jovens, numa elevada percentagem com formação de nível superior, em que, muitos deles, mal terminam a sua licenciatura vagueiam, (os malteses dos novos tempos), de empresa de trabalho temporário em empresa de trabalho temporário. Por vezes a mesma empresa, que numa lógica engenhosa de não criação de vínculo, faz girar o mesmo trabalhador por várias empresas da empresa mãe. A Randstad, a mais conhecida do ramo do trabalho precário em Portugal, é disso um exemplo, com a Randstat – Recursos Humanos Emprego e Trabalho Temporário, e a Randstad II – Prestação de Serviços, Ldª.

Na página oficial da Randstad Portugal, é referido que a empresa “coloca cerca de 30 mil pessoas a trabalhar diariamente”. O que não diz é que, em 2021, as duas empresas do grupo duplicaram, em Portugal, os seus lucros relativamente a 2020, num montante de 768 milhões de euros.

 A este respeito a comunicação social dava recentemente conta, que entre as dez maiores empresas a quem o Estado português pagou uma compensação pelo aumento do SMN, com cada uma delas a embolsar mais de 100 mil euros, entre essa dezena, sete delas, são empresas de trabalho temporário. A saber: para além das já citadas Randstad, beneficiaram ainda desse apoio a Kely Services – Empresa de Trabalho Temporário – Unipessoal; Adecco Recursos Humanos – Empresa de Trabalho Temporário; Multitempo – Empresa de Trabalho Temporário, Ldª.; Intelcia Portugal Inshore, SA e a Manpower Talent Based Outsuorcing Unipessoal, Ldª. Por outras palavras, o nosso dinheiro, o dinheiro do Orçamento de Estado, também serve para alimentar os lucros, por vezes milionários, de empresas que praticam salários miseráveis e vínculos de trabalho precário.  

Também na nossa região há empresas de trabalho temporário. Pequenas é certo, mas há. Algumas delas têm sido notícia por más razões, por vezes associadas a esquemas mais ou menos mafiosos de trabalho. Aqui ao lado, em Espanha, o Jornal El País, noticiava há tempos que o tráfico de mulheres para a prostituição estava a aumentar naquele país a um ritmo preocupante, com o recrutamento de mulheres oriundas da américa do sul, sendo que a ação das autoridades policiais e judiciais se estava a tornar cada vez mais difícil face à cobertura proporcionada pelas empresas de trabalho temporário.

Haverá seguramente muitas destas empresas a agir num quadro de legalidade. A questão, no entanto, não se poderá analisar apenas numa ótica de conformidade com as normas legais. Ou mesmo éticas, já que eu, por exemplo, não gostaria que a minha força de trabalho fosse usada como simples mercadoria. A questão prende-se com o significado social do trabalho construído por trabalhadores, governos e empresários na segunda metade do século XX, e que os ventos do liberalismo estão a destruir. Com todos os “efeitos colaterais” dessa nova/velha forma de pensar a vida das pessoas. Quando se diz que no nosso país nascem poucas crianças, valerá a pena pensar se isso não terá também a ver com tudo isto que aqui hoje vos deixo.

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