Os Touros de Beja.

Quando tive idade para me aperceber do meu signo astral - Touro - e embora seja um autêntico ignorante na matéria astrológica, senti uma enorme tristeza porque queria, definitivamente, ser Leão. Por ser sportinguista. Os anos foram correndo e, mais tarde, percebi a importância e o alcance da figura do Touro. E da imagem do signo que me havia calhado em sorte. Nunca mais lamentei a figura zodiacal que os astros me ditaram; antes passei a enaltecê-la.  

O Touro é o símbolo da Cidade e Concelho de Beja, sendo um elemento presente nas várias épocas históricas de ocupação dos diversos povos, com esculturas conhecidas dos períodos do ferro, romano, medieval, manuelino, bem como da actualidade. Passei, assim, a perceber que, afinal, tinha tido a sorte de partilhar o meu signo com a mais icónica imagem da minha cidade. O Touro representava a força e hegemonia que hoje se concede ao leão, com a diferença de que podia ser domesticado, convertendo-se, assim, num imprescindível colaborador activo para o desenvolvimento da civilização.

São muitos os Touros, nomeadamente as suas cabeças, encontradas em Beja, ao longo dos anos. Talvez a maior e mais importante descoberta taurina tenha ocorrido em 2011. Falo do Touro da necrópole de Cinco Reis, desvendado durante a construção do adutor Pisão-Beja-5 Reis. Refiro-me a uma escultura votiva (oferecida em cumprimento de um voto) de cerâmica, oca, de um Touro, da primeira Idade do Ferro, século VII a.C., e que ficou designado, toponimicamente, como o Touro de Cinco Reis 8. 

De acordo com o sítio da National Geographic de 4 de Agosto de 2020, a figura representa um Touro "tombado sobre a barriga, ligeiramente recostado e apoiado em apenas três pernas, dobradas pelo joelho. O animal poderá ter estado originalmente assente numa base. Desconhece-se a sua função, mas tem sido defendido que a atitude de repouso de esculturas votivas poderia estar associada à representação de um deus do mundo sobrenatural". As palavras são do arqueólogo António Pereira. Que acrescenta que a escultura é um elemento de um monumento funerário associado à sepultura de um adulto, “possivelmente um guerreiro, dado que ali se encontraram duas lanças, um punhal e um vaso cerâmico”, para além de vários adereços de adorno pessoal, como pulseiras, colares e alfinetes, apontando para a importância do defunto.

Segundo o Jornal Público, de 1 de Maio de 2012, “a cabeça possui um pormenor curioso: os olhos, ao contrário do que é natural, aparecem representados na parte frontal, em vez de se posicionarem lateralmente. Para os investigadores, este facto ‘traduz uma certa humanização da representação’. Realçam-se ainda as marcas de cordas na parte superior da cabeça, reveladoras de que estará sob sequestro [domesticado]. Também o arqueólogo André Tomé se lhe refere, acrescentando que “o artista pretendeu dar a sensação de movimento à cauda, como se percebe pelo seu afastamento do corpo e pelo desenho dos longos pelos da extremidade na garupa direita”.

Todos estes pormenores sugerem a representação de um animal ‘domesticado com utilização para tracção’, notam os arqueólogos, que destacam as ‘grandes dimensões do focinho’, a indiciar um animal resultado de um já longo processo de domesticação. A figura é representativa de um macho, que foi sujeito a tratamento nas extremidades, e apresenta quatro unhas em cada pata, e de forma detalhada. A peça tem uma altura de 23 centímetros por 17 de largura e 45 de comprimento.”

Outra peça vem lançar pistas para a utilização iconográfica do Touro pela cidade ser muito anterior à presença peninsular do grande império Romano. André Tomé descreve-a como “uma pequena escultura de touro, encontrada em níveis associados à última fase de utilização de um templo da Idade do Ferro, detectado nas traseiras da Praça da República, e que terá coexistido com as novas estruturas Augustanas.” Ou seja, os Romanos depararam-se com a figura taurina como entidade divina, ou totémica, da cidade, pré-existente à sua chegada. Mas é com a sua civilização que o Touro se afirma, assumindo-se como símbolo de Beja. O arqueólogo destaca a “Cabeça de Touro Romana (no Museu Regional de Beja), em mármore branco e de feições mais estilizadas, como sendo, certamente, uma das dez cabeças de touro referidas por André de Rezende, em 1593, na sua obra “As Antiguidades da Lusitânia”.

A Cabeça do Touro, representativa de força, resistência, e da riqueza agrícola, faz parte da identidade da Cidade ao longo dos seus milénios de existência. Está no seu brasão desde os seus primórdios, representado actualmente por uma cabeça de Touro de negro realçado de prata, vista de frente, sendo que já ocupou tamanho, lugares e posições de maior destaque. Mas nem sempre foi assim. Por curiosidade, sobre o brasão de armas da cidade, e de acordo com o sítio de internet da C.M.B, - Ordenação heráldica do brasão e bandeira - o actual brasão surge através do parecer apresentado por Affonso de Dornellas, à Comissão de Heráldica da Associação dos Arqueólogos Portugueses, aprovado em 1937 [e adoptado pelo município em 1938, não sem alguma polémica e resistência]. Pela mesma Associação tinha já sido aprovado, em 1928, um parecer sobre o rearranjo das armas e bandeira da cidade de Beja, assente nos conhecimentos obtidos sobre as antigas armas da cidade. Assim, e com as mesmas peças dos elementos antigos [apesar de não se conhecer nenhum selo medieval] foi-lhe dada melhor arrumação e representação artística. Nalgumas reproduções antigas, a cabeça do Touro aparecia, por vezes, com parte do corpo; o castelo surgia com o aspecto de cidade; as águias pareciam umas pombas; as quinas apareciam por vezes com a orla dos castelos.”

No entanto, de acordo com o Boletim do Arquivo de Beja, (Vol. V, I Série, de 1944) no início da década de 40 do séc. XX, “o tema voltou a ser agitado na imprensa local e, nas colunas do Diário do Alentejo, o Senhor Doutor Diogo Francisco Pereira de Castro e Brito chamou a atenção da C.M.B. para os trabalhos de investigação levados a efeito no Arquivo Nacional da Torre do Tombo pelo Senhor Doutor Silva Marques, de Faculdade de Letras de Lisboa, trabalhos, esses, que tornaram conhecida a existência do selo medieval da cidade.” Contudo, aparentemente, o brasão de armas da cidade não sofreu mais alterações de grande monta.


Regressemos às enormes cabeças marmóreas. De acordo com a arqueóloga Maria da Conceição Lopes, “as cabeças de touro de Pax Iulia, não sendo todas iguais, embora o tamanho seja aproximado (74 e 77 cm para as da Igreja de S. João) têm todas em comum o facto de não terem chifres, nem orelhas, sendo que uns e outros poderiam ser de encaixe como sugerem os vestígios dos espigões de ferro que no lugar delas ainda restam; têm narinas bem abertas e olhos expressivos, salientes com iris e pupila bem marcada, pelo encaracolado na testa, focinho bem musculado e as rugas da pela bem definidas, aspectos que conferem a estes animais força e pujança e à escultura harmonia e beleza”.


A relação íntima de Beja com o Touro destinou-lhe, ainda, a famosa lenda de Beja, do Touro e da Cobra. Destaco uma das suas versões (que proliferam abundantemente, sem autor definido, em documentos físicos e virtuais).

Esta história passa-se muito antes da chegada dos lusitanos, no local onde hoje se encontra a mui nobre cidade de Beja, com as suas muralhas romanas, os seus prédios góticos, a mesquita árabe e o castelo do princípio da monarquia portuguesa. Essa Beja tão antiga, com vestígios de quatro civilizações era, então, um pequeno povoado composto por cabanas construídas de pedra e madeira, cobertas de colmo, e que cujas populações apenas se entregavam ao exercício da caça como meio de subsistência. 

Todos os campos que até há poucos anos ostentavam os tons verdes, castanhos e dourados das culturas de sequeiro, e que hoje em dia são compostos de abundantes cultivos de regadio, eram à época um compacto matagal, com bastantes zonas pantanosas, e muito difícil de ser penetrado pelo homem. Mas havia quem por lá vivesse e aterrorizasse toda a região. Uma serpente gigante. Uma serpente que, qual monstro, tudo destruía e todos devorava. Era dramática e permanente a inquietação do povo que habitava o local que, mais tarde, os romanos haveriam de baptizar de Pax Julia, de seguida Pax Augusta, e no domínio árabe se chamou, por corruptela, Paca, Baju, Buxú, depois Baja, e que presentemente tem Beja por nome. 

Contudo, um dos habitantes da cidade teve, um dia, uma esclarecida ideia: envenenar um Touro e enviá-lo para a floresta onde a serpente reinava. Aprovado o plano por toda a comunidade, o Touro foi envenenado e enviado para o bosque. A forte cobra facilmente o atacou e devorou, deixando-se envenenar e acabando, assim, por morrer.

Na Página de Facebook Portugal Romano pode ler-se a publicação que me inspirou a escrever esta crónica. Aborda as Cabeças de Touro de Beja, da época de Augusto. As monumentais cabeças de Touro romanas, recuperadas na cidade de Beja, e que fariam parte de um monumento da antiga Pax Julia, a Beja Romana, capital do importante Conventus Pacencis. As duas cabeças de Touro do Museu Regional de Beja estavam colocadas na demolida Igreja de S. João, orientadas para antiga extensão da Rua do Touro, outrora a mais importante artéria da cidade, e assim denominada devido, justamente, às cabeças bovinas ali encontradas, e que à frente abordarei.

Escreve a Professora de História Maria Filomena Santos Barata, que “o culto deste animal, enraizado nas religiões do Mediterrâneo e do Próximo Oriente, deve-se ao facto de que, a partir do Neolítico, as populações consideravam o touro, enquanto ‘pai do rebanho’, uma fonte de riqueza de primeiríssima ordem. O aspecto sacrificial do touro é uma constante no mundo mediterrânico oriental e greco-latino, onde esse sacrifício assume um caracter fundacional.”

Tida esta contextualização, regressemos aos testemunhos taurinos de Beja. Porque há muitos mais Touros distribuídos pela cidade: na torre sineira da igreja de Santa Maria da Feira encontramos uma cabeça de Touro do período romano. No local, possivelmente, situou-se um edifício religioso na Antiguidade Tardia, que provavelmente veio a ser sucedido pela Mesquita Islâmica.

Outro exemplo é a cabeça de Touro das reservas do município de Beja. Trata-se uma peça de elevada qualidade, datada da época do imperador Augusto. Foi recuperada em 2005 durante a abertura de uma vala na Rua do Touro. Esta cabeça de Touro, com mais de 700 kg, cinzela em mármore de Trigaches, e de feições imponentes, foi resgatada do solo, sendo a segunda figura descoberta nessa rua. Já na década de 40 e 50 do séc. passado, durante obras de saneamento e infraestruturas, foram descobertos dois elementos pétreos com cabeças de Touro esculpidas em mármore, em frente ao número 34 da Rua do Touro. Esta sucessão de descobertas, sempre relacionadas com a temática táurea, deixa antever a possibilidade de outros achados virem a ser descobertos em futuras escavações neste sector do centro histórico da cidade. Mas sobre este espaço em particular, e acerca dos usos destas cabeças bovinas, a arqueóloga Maria da Conceição Lopes e o estudioso Leonel Borrela - malogrado artista plástico, investigador e estudioso de Beja antiga - estão de acordo. Ambos apontam para a sua utilização como chave de fecho de arco ou como friso angular de um grande edifício, no espaço da entrada monumental para o recinto do Fórum Romano de Pax Julia.

Como já vimos, nem sempre as cabeças de Touro nos têm surgido enterradas. No torreão da muralha medieval, no Parque Urbano Vista Alegre, paralelo à rua Capitão João Francisco de Sousa, encontramos outra cabeça de Touro. Uma das justificações para que aí se situe prende-se com o facto deste troço da muralha apresentar vários materiais romanos, e tardo-romanos, (re)utilizados na sua construção. Como adverte a arqueóloga Maria Manuela Alves Dias, no seu trabalho Os Cultos Orientais em Pax Iulia, Lusitânia, “não é possível, hoje em dia, situar topograficamente, na actual cidade de Beja, os diversos documentos epigráficos e escultóricos que testemunham a prática de Cultos Orientais na Colónia romana de Pax Iulia, sobretudo porque, como vestígios arqueológicos, a maioria desses documentos apareceram reaproveitados em construções ou entulhamentos de nivelação de épocas posteriores”.

André de Resende, humanista do século XVI, refere a existência de dez cabeças de Touro na cidade de Beja, sendo que hoje são conhecidos cinco exemplares. Segundo Leonel Borrela, "do edifício romano, público ou religioso, a que pertenceriam as cabeças de Touro da cidade, ainda nada se sabe. Talvez futuras investigações arqueológicas em Beja [se quem a governa tiver essa estratégia para a cidade] venham a desvendar este importante e único monumento romano em Portugal”, apesar do hoje se acreditar claramente que fariam parte do imponente fórum romano de Pax Julia.

Foi justamente o investigador Leonel Borrela que, em 2011, escreveu no Diário do Alentejo sobre a existência de "duas cabeças de Touro: a da esquerda, situada na galeria exterior do Museu Regional de Beja, cujo "acervo arquitectónico" romano, entre fuste liso fragmentado, cabeças de Touro, capitéis compósitos e cornijas, é quase todo proveniente da área delimitada entre as ruas dos Infantes, do Touro (como se disse atrás) e extremos do Largo da Conceição (entre a abside da demolida igreja de S. João e a antiga Rua da Torrinha), portanto, provavelmente, do extremo Este-sudeste do Fórum de Pax Ivlia." A arqueóloga Conceição Lopes refere, ainda, que todas estas “cabeças de Touro, datadas do final do séc. I a.C. / I d.C. fariam parte da síntese decorativa do fórum, e seus edifícios, onde tomariam lugar de destaque”. Borrela chamou a atenção para uma cabeça de Touro que chegou a estar na Praça de Armas do Castelo de Beja, mas cujo rasto, entretanto, pelo menos publicamente, se perdeu. De acordo com Conceição Lopes, “não encontramos nenhuma publicação que apresente o estudo desta peça de muito boa qualidade, datada da época de Augusto, exemplar com características muito similares às daquele que está exposto na parede exterior do Museu de Beja.”

Contudo, a relação com o Touro, em Beja, vai ainda mais longe. Como a existência da Rua do Touro, em tempos medievais a mais nobre da cidade, e que se estendia desde a central zona da Praça da República (ainda sem esta ter sido mandada erguer por D. Manuel I) - e que ao tempo Romano albergava o famoso Fórum Romano da Cidade - até à saída da urbe pelas imponentes Portas de Mértola. A Rua do Touro acolhia muitas das mais nobres famílias bejenses, como a de Mariana Alcoforado, e alguns dos estabelecimentos de elevada importância na cidade. Conceição Lopes refere que, nessa rua, “no final do século XV e início do séc. XVI moravam, entre outra gente importante, D. Brites, a mãe de D. Manuel, o seu físico pessoal, António (Mestre) Bom Dia, a sua donzela e secretária, D. Isabel de Souza, Leonel Rodrigues, Escudeiro do Infante D. Fernando e cavaleiro da Ordem de Cristo, João da Maia, tabelião em Beja, pelo duque D. João, o escudeiro Rui Diaz, o escudeiro João Bocarro, entre outros. Foi uma rua estruturante da malha urbana em época romana.”.

No trabalho Relatório das Cousas Notáveis da Cidade de Beja - A igreja de S. João Baptista, de Marta Páscoa, levado a cabo em 2002, com base no estudo e transcrição paleográfica do Manuscrito de Pedro Pires Nolasco Serrano, pároco da Freguesia de São João Baptista, e que data do início séc. XVIII, pode ler-se: “Na provincia do Alentejo [a cidade de Beja] he tam antiga que com certeza se não sabe quem foi seu fundador, nem em que tempo se fundou. Alguns dizem que os cartagineses, porque a imitação de Cartago lhe deram por armas a cabeça de hum boy, do qual brasam ainda hoje usa com as armas reaes entre as duas pontas do Touro e outros entre as duas pontas pintam a grande torre de omenage desta cidade e sobre ella o escudo das armas reaes deste reino.”

Sobre o mesmo tema, o antigo Bispo de Beja, Frei Manuel do Cenáculo, defendia, segundo Conceição Lopes, “a fundação fenícia da cidade e o forte comércio da urbe - cujo nome seria Ges - com os cartagineses. O bispo pacense invoca as cabeças de Touro marmóreas, que pendem nos muros e paredes da cidade, acentuando a da Porta Nova, chamada de Évora [onde] se conservão as antiquíssimas armas de Beja, compostas de hum navio, e huma cabeça de Toiro; sinal de agricultura e commercio marítimo, particularmente com Cartagineses”. De referir que, sobre Cenáculo, e a imensa e valiosa colecção arqueológica que o Bispo organizou no seu Museu bejense Sesinando Cenáculo Pacense, diz Leonel Borrela - e eu concordo inteiramente - que” infelizmente, as esculturas figurativas e outras peças que hoje deveriam estar em Beja, dada a sua raridade e qualidade de execução, e porque são de cá, encontram-se actualmente expostas no Claustro do Museu de Évora, cidade para onde Cenáculo levou então parte [a que pôde] da ‘sua’ colecção”.

De regresso à fundação da Cidade como importante pólo urbano, produtor, comercial e social, o sítio de internet Lusitânia em Imagens, de 2 de Abril de 2016, refere que “é suposto que a cidade tenha sido fundada por um povo celta cujo território se compreendia entre sul do rio Tejo e parte da Estremadura Espanhola, até ao território dos cónios, actual Algarve, e parte sul do distrito de Beja. Também é possível que tenha sido fundada por estes que a terão denominado por Conistorgis, principal oppidum [termo que, em latim, designa a principal povoação em qualquer área administrativa do Império Romano] pré-romano. Tradicionalmente, Pax Iulia é identificada como tendo sido Conistorgis, de época pré-romana, considerando as descrições de autores clássicos como Estrabão que afirma ter sido esta cidade a mais importante na região compreendida entre os rios Tejo e Guadiana e a mais conhecida dos Celtici. Denominada pelos autores clássicos por Colonia Pacensis (Plínio), Pax Augusta (Estrabão) e Pax Iulia (Ptolomeu), será esta última denominação a ser atribuída à cidade alentejana, concedida, muito provavelmente, entre 31-27 a.C. A condição da cidade cresceu e prova é o facto de Pax Julia ter acumulado o estatuto jurídico de “Conventus Pacensis”, isto é, uma circunscrição jurídica que lhe atribuía mais poderes e mais território, em 16-15 a.C.”

De regresso ao interessante trabalho de Marta Páscoa, pode ler-se, de Nolasco Serrano: “Antigualhas que se achão dispersas nesta freguesia [São João]: Nas costas da capela-mor da minha igreja, que ficam para a rua do Touro, sita nesta freguesia, estam duas cabeças de Touro esculpidas em dois grandes marmores, que mostram ser de tempo muito antigo. No frontespicio das cazas donde hoje mora o P. Manuel Nunes, escrivão do ecclesiastico desta cidade, se acha outra semelhante e, dentro das mesmas cazas, se acha sepultado hum gran marmor lavrado que tem a figura de hum grande boy; e no muro antigo desta cidade e freguesia esta outra grande cabeça de Touro. Ha tradição que estas cabeças de boy se acharão sepultadas nas ruinas quando os nossos reedificaram esta pavoação e por esta causa se presume que na ditta rua do Touro, ou foi o principio da primeira fundação, ou nella houve alguã grande obra publica, ou palacio de algua pessoa grande, como rey, ou senhor da terra, porque somente nesta parte se acham estes brasões das armas desta cidade, pois ainda que hoje se ve huã na praça debaixo das janellas da caza da camera desta cidade e outra sobre as portas de Évora.”

 

Na realidade, e segundo André Tomé, “a persistência iconográfica taurina é inequívoca, sendo insistente no quotidiano da cidade medieval e moderna. Nesses tempos, quem aos chafarizes acorresse, encararia o olhar do touro, quer no brasão que se expunha na cantaria, como o que pode ainda ser visto no poço de Aljustrel, como por vezes na função de bica, através da qual a água corria.”

Também a revista O Archeologo Portuguêz, (Vol V, Nº, de 1890-1900), reforça esta ideia, quando refere que “o touro do brasão d'armas da cidade apparece em toda a parte: em sinetes, em azulejos, em pedras, e até num tinteiro de prata, offerecido a Beja por el-rei D. Manoel.“ Trata-se da escrivaninha de D. Manuel I, oferecida à cidade pelo monarca, onde o touro figura como o grande símbolo do Concelho. No Catálogo de exposição do Museu Regional de Beja, podemos ler que “é uma peça do primeiro quartel do século XVI, em prata, composta por tinteiro, areeiro, pena (ou porta-aparo) e bandeja, apoiada por um discurso heráldico muito completo, gravado na salva e nas faces exteriores do tinteiro e do areeiro. Estes símbolos, ao exibirem as armas reais portuguesas, reforçadas pela esfera armilar – insígnia pessoal do monarca – e pelas armas da cidade de Beja (uma cabeça de touro de risco expressivo e detalhado), bem como pela cruz de Cristo, conferem à peça uma especial força institucional. Este tipo de armorial municipal garantia a presença simbólica da autoridade régia nos actos públicos, legitimando os documentos ali emanados como expressão do poder do rei sobre todo o território. Torna-se, assim, evidente que este conjunto heráldico exprimia visualmente a correspondência entre o espaço e uma série de direitos, prerrogativas e regalias que competiam àquele concelho; tais sinais permitiam, em suma, anunciar o regime jurídico e administrativo próprio que competia à entidade que geria o município (Seixas, 2018a: p. 217) ”.

Já vem, pois, de tempos imemoriais, este vínculo quase umbilical entre o Touro e a cidade de Beja. Mas nem só no passado longínquo encontramos o eco desta intrínseca relação entre o forte animal e a nobre cidade. Viajemos até ao século XX para nos focarmos no artista plástico, nome maior no panorama das artes nacionais, Jorge Vieira (1922-1998) autor neo-realista, surrealista e abstracto. O escultor, cuja obra dispõe de uma Casa-Museu em Beja (sita na Praça de Armas do Castelo), cidade à qual doou parte significativa do seu espólio, tem na figura do Touro um dos elementos centrais da sua obra, quer em ferro, quer em barro. Sobre esta temática, levou a cabo a Câmara Municipal de Beja, em Fevereiro de 2023, o colóquio Os Touros que Habitam as Cidades de Beja. A iconografia do Touro na História de Beja e do seu território

Temas de extremo interesse foram debatidos por especialistas, como por exemplo “Do sacrifício do Touro à cidade de Beja do século XXI”, pelo arqueólogo André Tomé; “Os Touros pré-romanos do território de Beja”, por Ana Margarida Arruda, historiadora e arqueóloga, ou “Célebres cabeças de Boy de mármore existentes em Beja”, pela arqueóloga Conceição Lopes. Esta acção foi levada a cabo no âmbito da grande Exposição Memória e mitos – o Touro na obra de Jorge Vieira, no Centro de Arqueologia e Artes, em Beja, e que expôs desenhos originais e reproduções de documentos do espólio Jorge Vieira.

Sobre o pensamento do escultor, referiu a curadora responsável, Raquel Henriques da Silva, historiadora de arte, que “a modernidade tinha raízes pertinentes, por exemplo na escultura e cerâmica antigas da área do Mediterrâneo. Por isso, os seus Touros são um elo misterioso, que se relaciona com a antiquíssima cadeia de símbolos que teve em Beja um palco dinâmico”. Como se completasse esta análise, André Tomé acrescenta, ainda, que “inequivocamente, o touro ocupou sempre uma posição destacada ao longo dos vários tempos da cidade de Beja, do século VI a.C. até aos nossos dias.”

Estes são alguns dos factos, dados ora científicos, ora curiosos, que unem, através dos séculos, o Touro a Beja. E ainda bem que foi o Touro que me calhou na sina dos signos.

 

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