Opinião Atual

Voando sobre um ninho de cucus (melharucos, cartaxos e pardais)

Nos últimos tempos não tem sido fácil concordar com qualquer coisinha que dali venha, mas nisto, vá lá António Costa, até não andamos longe. Salvo seja. Um mega-aeroporto em Beja, como alternativa a Lisboa, “não faz sentido”. Disse ele. E eu alinho. Se bem que as razões, as claras e as encobertas, que nos levam a partilhar esta falta de “sentido” não casem umas com as outras. Ou melhor, as minhas com as dele. Nem de perto nem de longe.

Para Costa, em público, de cara descoberta, “é intransponível” a distância que separa Beja de Lisboa. Ponto final, prescreve ele. Reticências, recomento eu. Os compagnons de route da briosa casta imobiliária, os leurs amis dos meigos fundos financeiros internacionais e os velhos partneres do patobravismo das obras públicas, esses sim, falam enquanto ele, António, cala. É muito grande e muito gorda e muito sôfrega e muito impaciente, esta sua famille agitée.

Mesmo assim, penitente me confesso, condescendo com a ideia de não “fazer sentido” um valente aeroporto para Beja. Bem sei que temos contas a acertar com o, como é que se diz?... desenvolvimento. Essa nascente de enérgico progresso que brota por todos os lados, menos aqui, junto a nós, que somos uns infelizes desgraçados, esquecidos e mal-amados. E a culpa deste sequeiro é deles, sempre deles, somente deles. Sejam lá eles quem forem.

Olhando para a silhueta de Beja, assim ao longe, daqui de Baleizão, às vezes dou comigo a pensar no desenvolvimento. Pode parecer parvo, e se calhar até o é, mas ocorre-me, assim sem avisar, por dá-cá-aquela-palha, o diacho do desenvolvimento. Mas o desenvolvimento que me acode nem sempre é qualitativo (já lá iremos), antes quantitativo. Quanto desenvolvimento necessitaríamos de tomar para saciar a nossa sede? Para repor este nosso “atraso estrutural”? Todo o desenvolvimento deste mundo? Fábricas disto e daquilo e daqueloutro? Hubs aeroportuários? Pessoas, gente, muita gente, muita “massa crítica”? Quantas? Têgêvês delas? Lâmpadas LED em barda? Terá o desenvolvimento uma medida certa?

Já antes o publiquei, quando me era permitido fazê-lo em consciência e sem grilhetas, que Beja, esta nossa cidade, esta nossa região, este nosso distrito, está condenada ao sucesso. E não, não necessitamos de importá-lo, ao sucesso, lá dos confins do planeta. Basta procurá-lo no fim da rua. Da nossa rua. Entre os tarambecos de que nos fomos desconectando e a que hoje ligamos peva: o nosso património histórico, edificado, cultural, imaterial, natural. A nossa gente. O nosso largo onde sempre coube o mundo inteiro mas que, para expiação do poeta Fonseca, entregámos à solidão. Já não somos nem sabemos o que temos, apenas imploramos ser o que os outros são e têm. E isto sim, é pobreza.

Não sou um folclorista, no mau sentido do termo, um prosélito do pitoresco. Nem imagino esta minha (nossa) terra transformada numa espécie de reserva de velhinhos cantadores e contadores. Nada disso. Estou firme e fielmente ao lado de quem defende melhores acessibilidades para a região, embora me recorde como elas são mais de abalar do que de trazer de volta. E sim, também defendo a continuidade do terminal de aviação civil e até o seu alargamento - enquadrado na base aérea militar tal como hoje está (e bem) - como plataforma de apoio a Lisboa e a Faro. Quer para aliviar apertos de tráfego, embora me pareça que a indústria da aviação já não tenha asas para voar rumo ao futuro. Quer como “reserva” estratégica nacional em caso de crises ou coisa que o valha.

O que me incomoda, neste concreto do “aeroporto”, não é tanto a crença popular. Mas antes o ilusionismo promovido pelo poder político local e por algumas oposições e, acima de tudo, pelo grupelho rasca e oportunista que recentemente se formou para encher as algibeiras com os estilhaços da “bazuca”. Todos eles tão solúveis quanto a Farinha Amparo. É que ambas, crença e ilusionismo, são a mais profunda e desoladora expressão do desespero, associado à ingenuidade. O resto é engano. Falcatrua. Pura vilanagem em bom português, suave.

Apostar todas as fichas num aeroporto que se preveja engarrafado por charters de chineses como sendo a salvação dos aflitos (a nossa salvação) é algo que vai muito para além do racional. É ficção, da má. Há quem goste, pois há, mas basta rever a temporada anterior, a do Alqueva, para se ter uma leve ideia do fraco argumento.

Investiram-se quase três mil milhões de euros do erário público europeu num mega projeto “salvador” que se revelou, esse sim, um verdadeiro maná para os chineses que se aboletaram com a valência elétrica. E um eldorado para seis ou sete fundos financeiros internacionais, sem rosto nem paradeiro, que agora banham as suas oliveiras e amendoeiras com a água que, segundo o amigo Guterres, iria consentir a “verdadeira reforma agrária” do Alentejo.

Mas nem tudo é mau nesta longa metragem digna dos Razzies: os impostos e as mais valias não ficam cá, é um facto, mas sempre se dinamizou a indústria do arrendamento local à custa de amontoar trabalhadores imigrantes. Paletes deles. É justo. E digno.

Generalizar não é coisa de bom tom. Muito menos neste caso onde há exemplos de boas práticas, empreendedores locais de valor, gente séria que gosta da terra. Tanto a terra que cultiva, como aquela que habita, que também é a nossa. Mas Alqueva não deixa de ser um aviso sério à navegação, aérea. Aliás, o nosso maior orgulho e riqueza não continuam a ser, apesar do avanço das culturas agrícolas intensivas, esta plana natureza de que fazemos parte? Embrionária e fundadora?

 (Já agora, aqui que ninguém nos ouve: o porta-voz do partido Pessoas, Animais, Natureza desafiou Costa, com quem concordo sem nunca antes ter descordado tanto, a fazer um estudo de impacto ambiental para tirar a prova dos nove de como Beja é o sítio ideal para plantar um aeroporto de se lhe tirar o chapéu. Vindo de quem vem, André Silva, é de bradar aos céus. Uma pessoa, como ele é, que tem título de condução para montar na garupa da ecologia, acha mesmo jeito a este arreio de poluição pesadíssima que pretende entornar sobre nós? É certo que as estepes cerealíferas são cada vez menos extensas e que as abetardas, os cisões, os grous ou os cortisóis não são cor-de-rosa como os pássaros que migram para o estuário do Tejo. Mas deixa-te lá dessas mariquices, pá!)

O aeroporto XPTO “não faz sentido” (obrigado caro primeiro-Costa). Alqueva também não reformou grande coisa e muito menos a vida das pessoas (lamento informa-lo estimado ex-primeiro-Guterres). Então o que nos pode valer a nós, desgraçados que somos e nos sentimos, para ultrapassar essa fronteira intransponível do desenvolvimento? Olhar para o fim da rua, já se disse. Para o que nos é próximo e caro e nos diferencia (só não escrevo “identidade” porque os tempos correm tramados). É assim tão fácil? Não, não é! Bem se sabe que sofremos até às penas com a síndrome da “galinha da vizinha”. O que nos faz cacarejar e respigar por cada miserável bago de trigo que nos atiram para o masseirão.

Beja foi, é e será sempre uma cidade pequena. Graças a Deus. Uma cidade, hoje sombria e desalentada, sem rei nem roque, mas que ao longo da história sempre teve os seus clarões. Àqueles que querem sempre tudo, tudo, tudo, como o Sebastião a comer sem colher, virá de imediato ao pensamento a nostalgia da cidade romana ou da cidade manuelina. Mas não é preciso ser tão voraz. Basta recuar alguns anos. Ao tempo da instalação e funcionamento da base alemã. Ou ao boom do ensino superior.

É isso mesmo. O desenvolvimento que tanto nos ofusca, porque tarda, sempre passou por aí: pelo conhecimento, pela inovação, pelo saber, pela novidade. Uma cidade sem pensamento e sem rasgo e sem poesia será sempre uma cidade enferma e definhante. Tal como hoje é. Envelhecida e doente, como toda a região que a circunda.

Ora cá está uma ideia que partilhei com um artista plástico bejense, Jorge Castanho, ignorado e excomungado pela câmara dos vereadores, como tanta gente que pensa livremente nesta cidade: e porque não fazer política (nunca digo lobby, a franco-maçonaria de algibeira irrita-me solenemente e é o que não falta por aí) para trazer para Beja uma faculdade de medicina? Curava-se, de uma assentada, as tais duas maleitas verrinosas que hoje nos acometem até ao tutano. A doença, ela mesma, e a doença do desenvolvimento. Mas isto deve ser uma ideia muito alarve. O que dizes tu, ó Costa, faz sentido?


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