
O QUE NOS SALVA É DAR UM PASSO E OUTRO AINDA
O filme “Dead Poets Society” estreou a 2 de Junho de 1989. Foi e continua a ser inspirador. Pelo menos, para mim. Por isso, no dia em que se celebram 33 anos sobre a sua estreia, apeteceu-me escrever um bocadinho a propósito do ofício de professor, na actualidade.
Escolhi ser professora e exerço essa actividade profissional, no ensino superior, há 29 anos. Considero que ser professor é uma profissão de excepção, na medida em que ajuda os alunos a “dar à luz” as suas próprias identidades, enquanto seres livres e inteligentes, autores e actores, autónomos e responsáveis pelas suas vidas. Por isso, um professor é alguém que está permanentemente “em missão”, atento aos sinais e às particularidades de cada aluno, consciente do papel transformador/inspirador que poderá ter na sua vida. Este foi o fascínio que determinou a minha escolha e foi isso que, há quase três décadas atrás, também me transmitiram, conjuntamente com as bases para o exercício desta profissão: no início e durante um determinado período de tempo, fui acompanhada por um professor de carreira. Por sinal, externo à instituição, devido à especificidade da minha área científica de formação.
Entretanto, muito mudou.
Peço emprestadas a dois colegas algumas afirmações, que subscrevo. Eu não diria melhor. Paulo Peixoto, em 2015, refere que a academia se converteu “numa máquina de triturar intelectuais”. “Ao «funcionalizar» os seus profissionais sitiou a capacidade criativa. Ao impor métricas em todas as dimensões da profissão formatou disciplinadamente os comportamentos. (…) As lógicas de hiperespecialização das profissões académicas e científicas, o produtivismo consubstanciado na urgência de publicar, a disseminação das ideias de concorrência e de competitividade, entre muitos outros, reforçaram a atomização dos académicos. Estão cada vez mais isolados num campo aberto e exposto. Essas lógicas tornaram-nos muito competentes na sua área de atuação, mas fizeram com que deixassem de ter uma visão eclética do mundo e do universo particular em que se movem. Em suma, produziram visões muito enviesadas da realidade. A mentalidade de bunker que daí resulta faz com que tudo esteja previamente resolvido por fórmulas que, numa realidade complexa, só os mais hábeis tecnocratas são capazes de dominar. Por isso, a capacidade intelectual para ver a mudança que emerge no contexto rareia na academia. E a capacidade para a provocar, por via do pensamento criativo e da abertura à diversidade, é ainda mais difícil de encontrar.”
Já em 2022, João Teixeira Lopes, numa crónica intitulada “A Universidade alienada”, fala da “mercantilização do saber” frisando que o grande objectivo dos professores é publicar em determinadas revistas de certas editoras, “um negócio de muitos milhões que se alimenta do reconhecimento generalizado de que o conhecimento aí publicado multiplica milagrosamente o seu valor no mercado, independentemente da sua qualidade. Por outras palavras, a qualidade é tão só o estar publicado com aquela referência.” Prossegue, referindo: “Publicar ou perecer, dir-se-ia, publicar para não se esquecerem de nós, para impressionar os júris, as agências de avaliação, os colegas, os superiores hierárquicos; publicar, sobretudo, para não ser desclassificado. O que se escreve conta pouco, pois o fetichismo (do português feitiço) da marca (o contentor, o invólucro) dita as suas leis. Assim, os artigos são coisas que, uma vez valorizadas, permitem comparar e medir os seus autores independentemente da qualidade intrínseca do seu pensamento. Sendo uma mercadoria, tais “produtos” regem, tal como Marx o analisou, as relações entre as pessoas como uma relação entre coisas (valho mais do que tu porque tenho mais artigos em revistas com alto fator de impacto).”
Face a esta realidade, receio que o tempo para conhecer as potencialidades de cada aluno, para lhes facilitar experiências de aprendizagem de complexidade crescente que ajudem a desenvolver o mais possível essas mesmas potencialidades, seja cada vez mais curto… Formação e educação não são sinónimos de instrução. Por isso, neste tipo de “dança” não me parece ser suficiente que (apenas) um dos elementos saiba muito de um determinado assunto ou assuntos; há que saber converter esse conhecimento em relações nomeadamente, em saber fazer, em saber ser e em saber estar. Isto implica tempo e disponibilidade. Do professor e, claro, do aluno. Mas também os jovens estão sujeitos a múltiplos (e novos) riscos, oriundos nomeadamente do mundo virtual, que fomentam a sua alienação…
Será este um discurso de quem não quer ou não precisa entrar em competições? Efectivamente viver no desapego, ajuda. Diria que é um discurso que não pode ser dissociado de quem já está numa fase mais consistente da carreira. O que lhe aumenta a responsabilidade. Entretanto, fez um trabalho, dentro e fora da sala de aula, nas componentes científica, pedagógica e organizacional, em que uma importante parte é acessível a qualquer um, na medida em que está registado. Não, não especialmente nos conhecidos papers. Estes só aconteceram e acontecem quando têm de acontecer. A linha orientadora foi crescer como pessoa e como profissional, com a ambição de contribuir para ajudar os alunos a serem maiores e melhores seres humanos. Esteve, e continua, dentro do sistema: por opção. Todas as escolhas são discriminatórias. Por isso, o caminho que priorizou fez-lhe perder umas coisas e ganhar outras.
Então, se o sistema faz as exigências que acima são descritas, existirão formas de superar este sentimento de alienação? Cada um procura o espaço que deseja e irá trabalhar para o ocupar. Poderá ter, ou não, êxito. Na viagem e no destino. Pessoalmente, continuo a fazer as críticas que entendo fazer, quando e onde as entendo fazer. Continuo a procurar agir em vez de reagir. Prossigo, como sempre, a colocar os alunos em primeiro lugar: são eles a razão da existência do professor. Persisto em manter várias actividades paralelas que me permitem promover conversas e discussões, dentro e fora da escola, assim como alargar continuamente o meu mundo. Com efeito, o que nos salva é dar um passo e outro ainda.

Fotografia de uma cena do filme “Dead Poets Society”.
(https://imagesvisions.blogspot.com/2020/03/sociedade-dos-poetas-mortos.html)
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