O Lidador e O Sem Pavor

O tema é controverso e arrisca-se a ser defensável e atacável de forma convicta, dependendo dos pontos de vista. E sobretudo torna-se sensível até porque vivemos tempos da chamada “cultura de cancelamento” nos quais quem possuir uma opinião que não flutue ao sabor da maré pode ser facilmente rejeitado. 

O rescrever da História, e o próprio revisionismo histórico, quando instrumentalizados, ou pouco ou mal fundamentados, compreendem riscos e perigos que podem desvirtuar a própria História e os seus protagonistas, tenham eles sido bons ou maus protagonistas, até mesmo quando esses são apenas maquilhados para parecerem mais cândidos aos olhos de hoje. Isto é higienizar a história. E não é isso que quero fazer nesta pequena análise histórica sobre duas figuras que marcaram de forma indelével a idade Média num Portugal ainda a cravar as suas fronteiras (as quartas mais antigas do mundo) no planisfério: O Lidador Gonçalo Mendes da Maia e Geraldo Geraldes, o Sem Pavor.

Para começar, considero que todos os factos históricos devem ser analisados e entendidos à luz da sua época, do seu contexto, dos valores éticos da humanidade vigentes à altura, bem como do contexto dos testemunhos que os documentaram, e das suas épocas.

Gonçalo e Geraldo nascem no séc. XII. Entre estes dois homens está D. Afonso Henriques que estabelecerá diferentes relações com cada um deles. Ambos são homens do Norte de Portugal, o embrião do País, e a região mais afastada do sul peninsular, território dominado pelos Mouros, e onde tiveram lugar as batalhas mais sangrentas pelo domínio territorial, bem como pelo poder e hegemonia de cada uma das religiões.

Como brevíssimo contexto, podemos assumir que a ética medieval, de forma geral, é uma síntese do pensamento filosófico grego com as ideias cristãs. Isto é: o pensamento grego era sobretudo virado para a Polis, para as pessoas (apesar do seu sistema politeísta), ao passo que o pensamento medieval se centrava em Deus. Assim, os filósofos medievais defendiam que o amor a Deus era a condição primordial para o homem atingir a perfeição moral, adoptando alguns conceitos gregas que se compaginavam com a fé cristã. 

Isto serve apenas para contextualizarmos a noção de pensamento ético da chamada “idade das trevas”. Sobre esta questão das ideias da Idade Média, dizia o malogrado especialista desse período histórico, José Mattoso, que acaba de nos deixar, em entrevista à agência Lusa, que o seu fascínio por aquele período histórico estava na mentalidade coeva. “Como viam o mundo e se organizavam para tentarem dominar a realidade”. Também considerava que a mentalidade “é uma das chaves mais decisivas” para compreender as estruturas sociais.

Vamos a exemplos. À luz dos dias que correm, e da ética do pensamento vigente, Geraldo Sem Pavor poderia facilmente ser comparado com orusso Yevgeny Prigozhin, o famoso (pelos piores motivos) ex-líder do exército mercenário Grupo Wagner – ambos lutam apenas por recompensas; estão completamente afastados dos valores patrióticos dos seus países; ultrapassam todos os limites minimamente aceitáveis da prática de guerra. Mas o objectivo desta análise é não comparar extrapolações de diferentes períodos históricos. Olhemos, pois, Gonçalo e Geraldo no seu contexto. Na sua época, Geraldo Geraldes também não era um exemplo da ética vigente. Nunca foi um patriota, ao invés de Gonçalo. O Sem Pavor foi um mercenário, da mesma igualha dos piratas holandeses, e outros, que viviam do saque, do dinheiro fácil, e dos crimes mais bárbaros. 

Na Reconquista cristã da Península, Geraldes teve de abandonar o Norte do País, aparentemente por lá ter cometido uma série de delitos, e ofereceu-se, juntamente com o seu bando de mercenários, salteadores e proscritos, a D. Afonso Henriques para conquistar a cidade de Évora, e mais umas quantas localidades próximas da linha da frente. Segundo rezam os factos, imediatamente depois de ter estado a combater pelos árabes, quando estes lhe pagaram mais. Mais tarde haveria de voltar aos primeiros, em troca de serviços e protecção. Ao que parece viveu sempre de falsas alianças, enganando e roubando mouros e cristãos à vez. Um pirata sem escrúpulos que saqueou, incendiou e arrasou cada cidade que tinha feito o "favor" de conquistar. Apenas e tão só para seu proveito. 

Não sendo revisionista, antes analisando, à luz da mesma época, a conduta de dois homens no mesmo contexto, e sobre o seu modus operandi, facilmente podemos concordar que os valores éticos, sobretudo na prática bélica no séc. XII, eram bastante escassos. Contudo teriam uma existência, ainda que mínima, bem como uma réstia de ética mesmo que,para a época, bastante inquinada. Geraldo e o seu grupo de malfeitores não dispunham de uma coisa, nem de outra. Prova disso é a estátua que o eternizou, hoje localizada junto das ruínas do Castelo do Geraldo na serra de Valverde, Concelho de Évora, naquele que era o seu quartel-general. A escultura, de 2 metros, representa Geraldo com umaespada numa mão e segurando, com a outra, pelo cabelo, uma cabeça de um africano acabada de decepar. No chão, junto aos seus pés, jaz outra cabeça, de mulher, cortada. Eram o vigia árabe, e a sua filha, que guardavam as muralhas do castelo eborense naquela noite de 1165, antes de bárbaro Sem Pavor conquistar e entregar a praça a D. Afonso Henriques. O monarca já saberia da anterior aliança de Geraldo, por conveniência, com os Almóadas, mas o estado de guerra e a urgência da conquista para o alargamento do futuro Portugal fizeram Afonso Henriques passar por cima das questões éticas e nomear o incivil como alcaide de Évora e fronteiro-mor do Alentejo.

Mais uma vez não defenderei, nunca, o branqueamento da História. Mas também nunca farei a apologética de nenhum facto bárbaro. Como este, da estátua, do que ela simboliza, e do prestar homenagem a um bárbaro a praticar justamente um acto selvagem. Recordo que o mesmo permanece uma figura central na iconografia da cidade de Évora, encontrando-se representado em posição central no brasão de armas do município, montado a cavalo, e empunhando uma espada na mão direita(originalmente com a mão esquerda agarrando pelos cabelos duas cabeças, as tais do pai e da filha que acabara de decepar).

Quando se fala em espadas, na reconquista cristã e na formação de Portugal, é impossível não pensar em outras duas: a de D. Afonso Henriques – a tal cuja lenda diz que pesava 15 quilos, sendo precisos dois ou três homens para a levantar sem esforço e usá-la em combate – e a de Gonçalo Mendes da Maia. O seu epíteto de “O Lidador” advém justamente da sua destreza a lidar com a espada. Mas o Lidador era mais do que um manejador de armas. 

Da mesma forma que Geraldo se colou à história de Évora, onde dá o nome à praça mais importante da cidade, a presença de Gonçalo ainda hoje é intensa quer na cidade que o viu nascer, a Maia, quer naqueloutra onde cumpriu a sua última missão: Beja. Ambas contam com edifícios, artérias e estabelecimentos comerciais com o seu nome, bem como estatuária ou painéis de azulejos a ele dedicados. Bem sei da influência do Estado Novo na criação de míticos heróis nacionais a fim de fazer aumentar a baixa auto-estima lusitana anterior àquele período histórico. Mas esse regime já nos deixou há meio século. Há mais tempo do que os 41 anos que durou. E, porém, as referências ao heroísmo de Gonçalo Mendes, ainda perduram (tal como acontece com Geraldo, embora estejamos a falar de dois homens com valores completamente distintos). Este é um dos motivos que me leva, desde há anos, a defender a geminação das cidades de Beja e da Maia. São 462 quilómetros de distância. Mas que se fazem próximos através da figura do Lidador.

Gonçalo era um chefe militar – cavaleiro desde os 25 anos de idade – que lutava por e para o país que estava a ser construído, e esse era o móbil do seu envolvimento na guerra. Era guiado – segundo os escritos – por valores como a lealdade, consubstanciada na prática da verdade e na fidelidade aos princípios éticos da coesão do exército; pelo patriotismo, pela honra, que decorre da atitude honesta, firme e digna, assumida no cumprimento do dever. Todos valores éticos diametralmente opostos aos de Geraldo.

Há pouco tempo adquiri o livro “Super-Heróis da História de Portugal”, de António Gomes de Almeida e Artur Correia, com edição da Bertrand. Um álbum com um conjunto muito interessante de histórias de BD no qual figuram personagens históricas como a Padeira de Aljubarrota, Vasco da Gama, Gonçalo Mendes da Maia, entre outros vultos da história de Portugal. Também lá está o caudilho Geraldo, o que atesta da importância histórica que ainda hoje lhe é reconhecida, apesar de ser retratado como um inveterado saqueador.

O personagem que me levou a adquirir este livro, Gonçalo Mendes da Maia, percorreu os mesmos caminhos que Geraldo, nessas guerras que desciam a Península. Porém, nas páginas da história, não se lhe colou a mesma atitude mercenária de que goza Geraldo. Por algum motivo terá sido. Gonçalo sempre foi um fiel companheiro de D. Afonso Henriques, tendo estado em permanência a seu lado, fossem quais fossem os combates. Primeiro contra sua mãe D. Teresa, demasiado próxima de Castela; depois contra a hegemonia religiosa, e finalmente contra os árabes, no Sul de Portugal.

Na obra “A Morte do Lidador”, de Alexandre Herculano, o personagem principal era o cavaleiro Gonçalo Mendes da Maia. Um homem de valores e convicções, e que lutava pela construção e afirmação seu país. Um homem que Herculano (escritor e historiador da esquerda liberal, que nasce no início do séc. XIX) caracterizou (com algum exagero, é certo) como possuidor de uma integridade a toda a prova e de personalidade exemplar - saibamos localizar, determinar e compreender o estilo historiográfico dos tempos de Herculano, portador de alguns excessos de forma que visavam enfatizar os episódios históricos que relatava, como o facto da última batalha do Lidador se ter travado no dia do seu 95º aniversário .Devemos atentar, ainda, ao facto de a obra ter por título “Lendas e Narrativas”. Gonçalo Mendes também terá cometido atrocidades durante a guerra, certamente. A guerra é, em si mesma, independentemente das suas razões, uma manifestação da atrocidade humana (e, para agravar as coisas, recordemos os princípios éticos da Idade Media que apenas lhe ampliam a largueza dos seus contornos).

Reza a lenda dessa “Morte do Lidador” que, em Julho de 1170, estando Gonçalo na linha da frente do exército português, que no momento se encontrava em Beja, e ocupando o cargo de fronteiro-mor, no dia do seu 95º aniversário, decidiu rumar a sul para alargar o país e fazer frente aos mouros. 

O lidador ordenou aos pajens que arreassem o seu ginete murzelo, e que preparassem o seu lorigão de malha de ferro e a sua boa toledana (espada feita em Toledo). E assim deixaram o Castelo de Beja, rumo a Sul, trinta fidalgos, flor da cavalaria, outros quarenta que os apoiavam, sendo trezentos os homens d'armas, escudeiros e pajens que os acompanhavam.

Alertado pelo cavaleiro Mem Moniz, de que os mouros tinham um número maior de soldados, o Lidador avançou com o seu grupo de cavaleiros, iniciando a primeira batalha. No combate seguinte, por entre dezenas de sucumbidos de ambas as partes, o Lidador deparou-se com o seu congénererival, o terrível Capitão Almoleimar. O duelo de lanças seria feito no dorso dos seus ginetes. Ao terceiro embate Gonçalo derrubou fatalmente o líder mouro. Mas a peleja ditou que o Lidador ficasse trespassado pela lança árabe, que lhe desfez ossos e carnes do ombro esquerdo, por debaixo da grossa malha do seu lorigão. Os 4 pajens sobrantes prontamente levaram o Lidador a caminho de Beja, 

Sem cadeia de comando, as poucas centenas sobejantes do contingente de soldados mouros fogem do exército dos originais 70 cavaleiros portugueses. Porém, Ali-Abu-Hassan, o Rei de Tânger, que estava com seu exército sobre Mértola, viera com mil cavaleiros em socorro de Almoleimar. Os que haviam desertado juntaram-se aos reforços, e o exército português, já cansado, reduzido a menos de metade, e com vários ferimentos, viu-se em delicada situação. 

Avisado do ocorrido pelo pajem, o debilitado Lidador ordenou que lhe arreassem o melhor ginete e lhe devolvessem a sua espada toledana. Juntou-se aos resistentes lusos e fez aumentar o obituário árabe. Mas o seu fim estava demasiado perto. Lívido e sem forças foi derrubado por um sarraceno. Mas os portugueses que ainda sobraram aniquilaram o Rei de Tânger. Vendo o chefe máximo tombar no chão, os já menos de mil soldados mouros bateram em retirada perante as cerca de seis dezenas de resistentes lusitanos que, entre mortos e feridos, retornaram a Beja.

Esta narrativa de Alexandre Herculano ficou imortalizada em Beja através do painel de azulejos que retrata a morte do Lidador. Localizado no Jardim Jardim Gago Coutinho e Sacadura Cabral, inserido num monumento cujos elementos construtivos mais relevantes são copiados da Ermida de Santo André, em Beja, está o painel assinado por Jorge Colaço em 1940. Em baixo figura o grito do Lidador, depois de abater Almoleimar: “Perro maldito! Sabe lá no inferno que a espada de Gonçalo Mendes é mais rija que a sua cervilheira!” Também no mesmo Jardim, mas no topo oposto, pode contemplar-se a estátua de 5 metros de altura de Gonçalo, em mármore, da autoria de Julio Vaz junior (1877-1963). O molde da mesma estátua, em gesso, está na primeira sala do castelo de Beja.

Não pretendo nenhum tipo de enaltecimento nem da guerra, nem do heroísmo promovido nos tempos do Antigo Regime. Apenas a comparação entre dois homens da mesma época, cujo destino uniu na formação de Portugal, e que ainda hoje, no séc. XXI, servem de cama de memória a três cidades portuguesas. Como escrevi atrás, independentemente da ética de cada tempo, inclusivamente durante a idade Média, houve sempre homens dignos e outros desprezíveis. Desta forma, e respeitando democraticamente o contraditório e o argumentário de cada um, habituei-me a ver o Lidador como um herói. E não escondo que por vezes, sobre isso, me debato com a minha própria consciência. Mas - e apesar de tudo - vence sempre a mesma parte. Por isso, no final da minha refrega pessoal, contras e a favores par-a-par, Gonçalo Mendes da Maia veste a pele de herói. E o Geraldes Sem Pavor – que também perdeu a vida às mãos dos Mouros, em Ceuta, numa missão de espionagem ao serviço de D. Afonso Henriques – não passa de um mero vilão oportunista. 

 Talvez por essa diferença abissal entre ambos, o Plano Nacional de Leitura

Destaque e recomende, para apoio a projectos relacionados com História de Portugal no 3º, 4º, 5º e 6º anos de escolaridade, o livro “Gonçalo Mendes da Maia, o Lidador Destemido Cavaleiro de D. Afonso Henriques”, de Maria José Meireles, com Ilustração de Elsa Navarro, numa edição do Campo das Letras, de Julho de 2007. Todavia, talvez a obra que melhor ajude a compreender os tempos vividos por ambos seja “O Cavaleiro da Águia”, de Fernando Campos, Edição da Difel, Abril 2005. Um romance histórico sobre a vida e obra da célebre figura do séc. XII português, D. Gonçalo Mendes da Maia. 


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