Opinião Atual

Opinião Atual

Mais uma vez devemos registar a falta de informação disponível sobre outro dos grandes nomes do ensino e da pedagogia da cidade de Beja, e reconhecido em todo o País. José Gonçalves Jerónimo Aiveca foi um homem à frente do seu tempo no que concerne ao pensamento e à prática do processo educativo em Portugal. Nasceu em Beja em 1934 e foi nesta cidade que se notabilizou, na antiga Escola do Magistério Primário Particular, fundado por Janeiro Acabado, instituição que foi a percussora da Escola Superior de Educação de Beja, actual Instituto Politécnico de Beja, que deu início aos primeiros cursos no ano lectivo de 1986/87, aquando da extinção da Escola do Magistério.

A relação e os pontos de contacto entre os dois pedagogos, Janeiro Acabado e José Aiveca são inúmeras. O destino encarregou-se de os aproximar ao ponto de passarem a ser da mesma família, sendo que o Professor Aiveca viria a ser genro de Janeiro Acabado. Mas já nos ocuparemos desse aspecto. Começamos por uma característica que lhes era comum. A despretensão e sobriedade com que observaram, e se comportaram, perante o seu importante trabalho e percurso no ensino português. Nem um nem o outro se prestaram a grandes distinções e homenagens. Tampouco, e fruto dessas suas condutas, tiveram a preocupação de sistematizar e proteger o valioso legado que nos deixaram. A este propósito, a jornalista do Diário do Alentejo, Nélia Pedrosa, escrevia no seu trabalho José Aiveca, o vendedor de ideias, de 22/05/2015, que o pedagogo gostava de se dar ao próximo, mas era avesso ‘a honrarias’ [e, portanto], não deixou qualquer registo dos muitos instrumentos didácticos construídos ao durante a vida, destinados a auxiliar alunos e professores.” Mais à frente abordaremos a construção desses incríveis instrumentos didácticos.

O mesmo se passara com o seu antecessor Janeiro Acabado, no que toca a uma quase ausência de legado físico e organizado. António Manuel Tiago Janeiro Acabado, seu filho, no livro A Iniciação à Leitura e o Professor Janeiro Acabado – Vida e Obra, composto e impresso pela Associação de Municípios de Distrito de Beja, em 1993, dava conta da dificuldade na investigação sobre o legado do pai, referindo que o professor era “pessoa despreocupada em relação a si mesma e nunca teve qualquer cuidado em arquivar os seus estudos, os seus escritos e os seus trabalhos”, o que conduziu à perda de alguns dos seus papeis e manuscritos”.

Em muitos aspectos, falar destes dois notáveis marcos da história do ensino em Portugal, quase nos confunde pelas semelhanças entre ambos. Nélia Pedrosa refere que, quando o Sindicato dos Professores de Beja organizou uma homenagem a José Aiveca, o Professor não quis estar presente, enviando a filha em sua representação. “Gabriela Aiveca, a mais velha das três filhas”, e também professora, recordava ao DA esse dia: “Foi em 2000 e ele não foi porque não queria ir, e foi para Lisboa. Então fui eu, disse que ele agradecia, que não o julgassem mal, mas a sua personalidade não o permitia". Talvez por esta a discrição e recato, de ambos os pedagogos, restem hoje tão poucas memórias suas. É, pois, nossa obrigação, recolher a informação possível e sistematizá-la, oferecendo-a à comunidade e abrindo espaço a novos investigadores para que façam esse trabalho de estudo e promoção de dois legados ímpares para a história do ensino e da educação em Portugal.

De regresso ao texto do DA, José Aiveca é definido como um “homem muito avançado em relação ao seu tempo. José Gonçalves Jerónimo Aiveca, reconhecido pedagogo bejense, falecido em Abril de 2001, aos 66 anos de idade, será para sempre recordado como um visionário.” Essa opinião é partilhada por colegas professores, antigos alunos e pensadores do ensino, como veremos adiante.

Possivelmente o maior legado do Professor - e que infelizmente se perdeu - tenham sido os admiráveis instrumentos que elaborava, muitas vezes com a ajuda e participação dos seus alunos, e que serviam para tornar mais claro aos olhos destes o funcionamento, através da experiência, de muitos aspectos ligados à física, e à química. A esse propósito, escrevia Nélia Pedrosa, na referida peça do DA, que “o texto de apoio A Meteorologia Escolar, publicado pela Direção-Geral do Ensino Básico, em 1978-79, que mostra como se constroem vários instrumentos tendo em conta os diferentes níveis de ensino, será, muito provavelmente, o único registo escrito das suas criações. (…) Maria Augusta Ventura, que viveu parte da infância e a adolescência em casa do primo Aiveca considera, por sua vez, que o professor ‘foi o continuador da obra do sogro [Janeiro Acabado], mas enquanto o primeiro pedagogo deixou muita coisa escrita [embora, como vimos, muita se tenha perdido, e a restante nos tenha chegado em elevado grau de desorganização], José Aiveca não deixou nada que seja palpável’, com exceção do tal texto de apoio A Meteorologia Escolar, trabalho esse que levou a que fosse convidado a apresentar os seus instrumentos didácticos na Faculdade de Ciência, em Lisboa, relembra.”

Mas que importante texto era este? De regresso à reportagem de 2015 do semanário bejense, ficamos a saber que o ensaio foi salvo por ter sido publicado pela “Direção-Geral do Ensino Básico, no âmbito da Formação Contínua de Formadores. Nesse valioso testemunho do homem que “rompeu com o sistema dominante, privilegiando o saber fazer”, o professor afirmava que ‘uma escola que ajude a criança a crescer para o imprevisível requer estratégias opostas às da escola tradicional de dominante conservadora. E, parece-nos, a Pedagogia que faça prevalecer, num quadro de perfeito equilíbrio, as preocupações pelo desenvolvimento de um pensamento de tipo científico, no quadro de uma formação humanística, resolverá provisoriamente as nossas inquietações, restituindo-nos a certeza de que o homem do século XXI estará minimamente preparado para inventar as soluções fundamentais para o seu bem-estar e para a sua sobrevivência’.

A jornalista partiu em busca de antigos alunos que, com José Aiveca, estudavam para ser professores, como é o caso de Manuel Mantinhas que recorda o professor dos tempos da “Escola do Magistério Primário de Beja, entre 1963 e 1965”. Referia o seu discípulo que o mestre “defendia o oposto do ‘ensino directivo’, do ‘ensino de cátedra’, no qual ‘o professor se põe no estrado a debitar a matéria’.

Segundo o seu antigo aluno o pedagogo preconizava, precisamente, o oposto. “Ele organizava aprendizagens. Punha os alunos em situação de pesquisa e pesquisava com eles. O desenvolvimento de capacidades para a aprendizagem era a meta do professor para a vida. O ser contra o ensino directivo era um indicador de que já estava avançado em relação àquilo que se fazia normalmente nas escolas”. Nessa entrevista, Manuel Mantinhas, docente aposentado, frisava que “José Aiveca inovou ao privilegiar ‘a experimentação’, o ‘fazer com as mãos’, tendo ao longo da sua vida criado inúmeros instrumentos didáticos” de que já falámos, e que infelizmente se perderam, e “que tanto auxiliavam alunos como professores.”

José Aiveca, dono de um espírito criativo quase indomável, definia-se como um vendedor de ideias, citação que deu origem ao título da peça jornalística de Nélia Pedrosa. Foi esse seu tipo de raciocínio, a que hoje chamamos de “pensar fora da caixa”, abandonando as ideias padronizadas limitativas do pensamento, que o levaram a imaginar e construir, durante toda a sua vida uma série de instrumentos didácticos, “no verdadeiro sentido de que, apenas observando o seu funcionamento, os alunos entendiam as matérias mais complexas", destacava Manuel Mantinhas, dando o exemplo da experiência que mostrava aos alunos como se produzia electricidade numa barragem, utilizando um dínamo, uma roda de bicicleta, uma lâmpada, uma torneira e uma mangueira; mostrando que a água fazia girar a roda da bicicleta, que accionava o dínamo que, por sua vez, permitia acender a luz.

Uma das suas inovadoras práticas educativas era sair do confinamento físico da sala de aulas e “levar os alunos para o campo, a verem os bichinhos, a observar tudo (…) e isso era um escândalo, em termos administrativos, inspectivos. Era visto como um acto de indisciplina muito grande, mas a vida passa-se lá fora”, e ele sabia disso, assegurava Manuel Mantinhas.

Outro dos seus alunos, António Carvalhal, recordava nas suas redes sociais as saídas do Professor, com os seus alunos. “Levou-nos ao Guadiana a apanhar girinos e o que mais houvesse, apanhar pedras de todo o género…” Já na Escola do Magistério gravavam peças de teatro e faziam sessões de leitura num dia, para no outro construírem e, aprendendo, observarem “uma central que produzia electricidade a partir da fotossíntese, com um dínamo e uma lâmpada”.

A propósito da rebeldia de José Aiveca recordemos outro insubordinado docente do tempo do Estado Novo. José Francisco de Almeida Pacheco é um dos mais iminentes e escutados pedagogos portugueses; um dinamizador da gestão democrática na Educação. Em entrevista ao Jornal O Observador, de 26/08/2019, evocava a sua defesa de “uma escola sem turmas, sem ciclos, sem testes, sem chumbos”. O professor conseguiu, efectivamente, fazê-lo nos anos 70, numa escola pública - a famosa Escola da Ponte, que hoje se tornou num destino conceptual de "turismo educacional. Não progrediu. Um projeto deve estar sempre em fase instituinte, é um dos critérios da inovação. Deixou de estar; cristalizou.

A história da Escola da Ponte [em Santo Tirso] é uma história de sofrimento e resiliência.” Nos primeiros anos a instituição funcionou quase sempre na clandestinidade. Até que foram descobertos por um inspector. Depois outro se seguiu. Quis o destino que fosse José Aiveca, tendo-se dado o encontro de dois pensadores que se entendiam e respeitavam. “O inspector Aiveca, que homem extraordinário. O que aprendi com ele… Quando os inspectores se despojavam do seu autoritarismo e passavam a ser pessoas, entendia-me com eles.” O pedagogo José Pacheco não estava sozinho nesta sua perspectiva sobre o professor Aiveca. No tocante à sua missão de inspector, realçam os seus colegas, José Aiveca “sempre procurou, nesta função, resolver conflitos com moderação e evitando o extremar de posições”, pode ler-se num excerto retirado da crónica de homenagem do Boletim Informativo 193, 2º trimestre de 2015, da Delegação de Beja da Associação de Solidariedade Social dos Professores, intitulado “Homenagem ao Professor José Aiveca 1934 – 2001”.

Ainda sobre a lógica da abertura das escolas ao exterior, conta-nos o DA, que “o professor Aiveca foi também o ‘grande impulsionador’ das feiras das escolas, nos anos oitenta, uma iniciativa completamente inovadora que envolvia toda a comunidade e que permitia às escolas mostrarem o trabalho desenvolvido ao longo do ano lectivo, assim como ‘autofinanciarem-se’ através da venda de artigos realizados pelos professores, alunos e seus familiares. 

Neste âmbito, e regressando aos instrumentos didácticos construídos por José Aiveca, “quando a Escola do Magistério Primário de Beja – fundada, como já vimos, pelo pedagogo Janeiro Acabado, sogro de José Aiveca - passou a estatal, após o 25 de Abril, mudando da rua do Esquível para o primeiro andar do chamado Colégio dos Jesuítas (onde está instalada a GNR), José Aiveca foi convidado a dirigir aquele estabelecimento de ensino”. Foi nesses tempos que o professor “criou um laboratório que era considerado um autêntico museu científico na cidade”. Quando a Escola do Magistério deu lugar à Escola Superior de Educação de Beja, José Aiveca tinha já abandonado a direcção do estabelecimento para desempenhar funções de inspetor (às quais se referia, atrás, o pedagogo José Pacheco), tendo o laboratório deixado por si, sido, infelizmente, desmantelado. Relatava, em 2015, ao DA, Manuel Mantinhas, que “tudo o que estava no laboratório foi substituído por tubos de ensaio e instrumentos sofisticados", tendo todo o acervo de valor excepcional sido relegado, exclusivamente, para a memória dos seus formandos.

Em 1975 o director do Magistério Primário de Beja convidou para aí leccionar o Professor Luciano Caetano da Rosa, Doutorado em Letras, professor de Português na Universidade de Humboldt de Berlim e metodólogo na Escola Europeia de Berlim. O catedrático, ao DA, considerava ser difícil definir em poucas palavras José Aiveca. “Diria que o professor era um Pedagogo com todas as letras: (…) com vocação, com talento, com uma reflexão permanente, lenta, ou seja, tensa e densa, concentrada e multilateral sobre o fenómeno educativo quando temos perante nós pessoas, cada uma única, com vários patrimónios ou riquezas por si concentrados e que por vezes nem sequer sonhamos quais serão.

Sempre o “Laboratório Aiveca”. Também o Professor Luciano Caetano da Rosa retém na memória, dos tempos em que trabalhou na Escola do Magistério, “o ‘laboratório de didáctica Aiveca’, um ‘mundo de encantar’, embora 'para leigos aquilo também pudesse parecer algo confuso”, dizia. De acordo com o perito, Aiveca "era um pedagogo operário-artesão, intenso e amoroso, que criava uma infinidade de materiais a partir, até, de restos encontrados nalgum lixo. Com eles construía telescópios ou calidoscópios, por exemplo, e com esses instrumentos muitas matérias poderiam ser abordadas, desde a Astronomia à teoria das cores e da luz, à pintura, aos encontros a que chamamos casuais ou caóticos, entrando por vezes com muita clareza e simplicidade em conceitos nesse grau de ensino que só se estudavam na universidade como, por exemplo, a entropia.” Luciano Caetano da Rosa recordava ao DA que José Aiveca “trabalhava com objectos concretos na teoria dos conjuntos, em Matemática, ou para explicitar as operações aritméticas, indo ao encontro da fase de desenvolvimento cognitivo da criança”.

Na mesma peça é-nos relatada a memória da filha mais velha do professor, Gabriela Aiveca, professora do primeiro ciclo. Também ela, em criança, auxiliava o pai a recolher "bocados de tábua, fosse o que fosse, para construir aqueles instrumentos, que depois iriam auxiliar também os professores, permitindo passar da teoria à prática”.  

O laboratório não se cingia a instrumentos fabricados pelo Professor e pelos seus alunos. Em conjunto com estes também se destacavam “culturas biológicas com várias plantas, construções com pilhas, rodas, fios para experiências elétricas, ou moinhos de água, abordando-se várias matérias de várias ciências em simultâneo (Física, Economia, Produção Industrial...) em sínteses muito ricas". O Doutorado em letras é mais um a lastimar o desaparecimento dos materiais, considerando-o "uma perda lamentável para o ensino, não só em Portugal". De resto, tentou incentivar José Aiveca, tal como outros o fizeram, “a criar um manual de fichas didácticas, a que professor nunca acedeu. Um manual de fichas Aiveca poderia ter sido um auxiliar precioso, por exemplo, para todas crianças do mundo lusófono, sem falar já de possíveis traduções noutras línguas".

Nas suas redes sociais, o seu antigo aluno José R. R. Janeiro recorda, a propósito, um caso elucidativo do interesse gerado pelos notáveis instrumentos criados pelo Professor Aiveca. Referia-se, concretamente, a uma exposição organizada pelo Ministério da Educação, alguns anos depois do 25 de Abril, realizada na FIL (Feira Internacional de Lisboa). Contava o seu ex-aluno que ele próprio, “e outros colegas, éramos responsáveis pela concepção e montagem do pavilhão da Divisão do Ensino Especial da então Direcção Geral do Ensino Básico. No espaço contíguo ganharia forma o pavilhão do Ensino Básico. Era grande a expectativa à volta deste pavilhão. Mesmo antes de ser aberto ao público, já um grande número de professores se reunia em seu redor e a razão deste interesse eram os objectos: maquinetas e aparelhos construídos pelo professor Aiveca (alguns deles com ajuda dos alunos). Na realidade estes instrumentos constituíam grande parte do pavilhão mais importante dessa exposição.”

Durante a referida entrevista de 2015, Luciano Caetano da Rosa, apesar de reconhecer a dificuldade desse encargo, acabou por deixar algumas frases definidoras do espírito singular do pedagogo bejense, e que conheceu bem, descrevendo-o como “um filósofo ainda do tempo da oralidade e da solaridade, dos ritmos das estações, com uma cultura rural invejável, com observações de quem realmente observa o mistério das coisas.”

Uma passagem curiosa desse trabalho de Nélia Pedrosa diz respeito a Sebastião Ventura, que travou conhecimento com José Aiveca enquanto seu explicando de Física e Matemática, quando tinha “12, 13 anos e era aluno do Liceu de Beja”. Uma relação que, anos mais tarde, viria a estreitar os laços ao nível familiar. “José Aiveca, que andaria pelos 20, ainda não era ‘o professor Aiveca’, nem sequer sonhava em sê-lo, explicava o então professor aposentado. Era o ‘Zezinho’, aliás, como ‘sempre gostou de ser tratado’. O futuro professor via no seu explicador “um modelo de vida que gostaria que a humanidade partilhasse. Mesmo vivendo com algumas dificuldades económicas, dava explicações a alguns alunos sem cobrar nada. Era um indivíduo completamente desprendido dos bens materiais". 

Sebastião Ventura manteve convívio com José Aiveca até ingressar na Escola do Magistério, em 1960, ano em que o Mestre abandona a instituição, já formado professor. Contudo, “Sebastião viria a cruzar-se novamente com o professor no final do seu curso, tendo-o tido como metodólogo de estágio”, na antiga escola número 5, junto ao então Bairro dos Alemães, em Beja. “José Aiveca viria a casar-se, entretanto, com Maria da Conceição Janeiro Acabado, [filha do professor Janeiro Acabado], e também professora, passando a acumular as aulas do ensino primário com as de Ciências da Natureza na escola fundada pelo sogro”. Mas as caprichosas coincidências da vida não se deixaram ficar por aqui. “Quis o destino que Sebastião Ventura viesse a fazer parte da família de José Aiveca, por via do casamento com Maria Augusta, prima-irmã do professor. E o seu antigo aluno aprofundou, mais ainda, a relação com o professor. "Passávamos tardes inteiras a falar da visão que ele tinha da sociedade.” E essa era uma ideia de verdadeiro humanista na qual todas as pessoas, de todos os credos e orientações políticas, ou outras, “se davam bem.” O aluno, e depois familiar de Aiveca, destaca-o como “um modelo de ser humano”.

Por vezes - bem menos do que as justas e necessárias - o Professor Aiveca é recordado em diferentes fóruns. Foi o caso do anteriormente aludido texto com o título “Homenagem ao Professor José Aiveca 1934 - 2001”, extraído do Boletim Informativo da Delegação de Beja da Associação de Solidariedade Social dos Professores.

Esta crónica de homenagem exprime o ponto de vista dos próprios docentes que, falando em causa própria, destacam os valiosos ensinamentos, bem como a distinta conduta profissional levada a cabo pelo mestre que, segundo eles, “iluminou os caminhos de todos os que tiveram a sorte de encontrá-lo e de tê-lo a seu lado”, enfatizando todo o legado que [lhes] deixou e as sementes que frutificaram em cada um [deles], e nos lugares por onde passou.”

Acrescentavam os seus herdeiros do ensino que “não só influenciou os alunos que formou, os formandos que orientou, mas também foi objecto de investigações por especialistas da área da educação”. Sublinhavam, ainda, os docentes, que é necessário “recordar o seu extraordinário humanismo e o seu sentido de dádiva ao próximo. Profundamente crítico em relação ao egoísmo” social, era dono de “uma visão muito própria e altruísta daquilo que deviam ser os ideais que norteariam a vivência em sociedade. Como profissional, estava muito avançado em relação ao seu tempo, pois a visão que tinha do espaço escolar, da sua interligação com a comunidade, do papel do professor como agente que privilegiava os alunos como actores da sua própria aprendizagem, vieram alterar o que até aí estava instituído.” Também os seguidores do seu ofício lamentam que a sua humildade não tenha permitido que o seu legado fosse hoje mais difundido, salientando que “tudo fez sem esperar honrarias nem recompensas, pois a sua extraordinária humildade não deixava que muito daquilo que era, e do que fazia, fosse tornado público. Preferia a sombra à resplandecência da ribalta.”

Foi esta Associação que encabeçou a feliz iniciativa de homenagear o Professor Aiveca no dia 9 de Maio de 2015. No dia anterior os órgãos de comunicação da cidade noticiavam que a data contaria com várias cerimónias, visando o tributo ao professor e ao homem, das quais se destacava o descerramento de uma placa toponímica, na Praceta situada em frente ao Hotel Melius, em Beja, que passou oficialmente a ter o seu nome através da inscrição ‘José Gonçalves Jerónimo Aiveca - Professor - 1934/2001’.

Já muito aqui se procurou recordar sobre a carreira de José Aiveca. Contudo, os interesses do professor, para além das suas funções pedagógicas, eram vastos e bem intrincados na vida cultural da cidade. Dotado de uma enorme cultura, era também um vigoroso amante da fotografia. Contava a filha Gabriela, que "fazia diapositivos para serem usados na escola". Porém, outras artes lhe detinham o interesse, como a literatura e a pintura. Uma das suas funções mais marcantes a nível da vida cultural da cidade foi a direcção do Cine-Clube de Beja. De acordo com o seu antigo aluno José R.R. Janeiro, “ele era um dos principais, senão o principal dinamizador e organizador do Cine-Clube de Beja, tendo feito parte dos corpos gerentes durante vários anos”. Segundo José Janeiro, José Aiveca era “o conhecedor, o estudioso e o homem na ‘sombra’ que seleccionava os filmes projectados mensalmente no Cine Teatro Pax Julia, à média de duas longas-metragens por mês. Era ele o editor dos programas que se distribuíam mensalmente a todos os associados”, muitos jovens e adultos, com temas e explicações “criteriosamente escolhidos (porque submetidos à censura) tendo como preocupação contextualizar os conteúdos das fitas, as perspectivas dos realizadores e ainda as referências ao movimento artístico no qual se inseriam esses mesmos filmes.”

Referia o seu antigo aluno que “a história do Cine-Clube de Beja, no contexto do movimento nacional dos Cine-Clubes, está por fazer, como movimento cultural que em Beja teve uma actividade intensa e duradoura, com inúmeros associados e uma actividade regular numa época em que o cinema representou um meio de comunicação e aproximação entre os povos, ganhando particular relevância numa cidade em que o acesso à cultura era escasso ou nulo.” Uma realidade que valoriza de forma ainda mais robusta o trabalho desenvolvido por José Aiveca enquanto importante dinamizador e promotor cultural na cidade.

Mas a intervenção cultural do Professor não se cingia apenas aos movimentos de massas. José Janeiro trazia à tona da memória uma outra faceta que sempre caracterizou a sua vida de Educador. José Aiveca organizava sessões privadas com os seus alunos, e outros jovens, que reunia numa sala, “creio que em sua casa, apenas me recordo de umas escadas íngremes, logo a seguir à entrada, na rua do Esquível” (onde funcionou a Escola do Magistério Primário de Beja). Nessas sessões “o Professor passava películas de 8 mm e conversava connosco sobre esses mesmos filmes, alimentando a nossa curiosidade e a nossa cultura em geral.”

É de destacar que a maioria dos entrevistados e intervenientes das fontes que recolhi destacaram a excepcional dedicação de José Aiveca à família, caracterizando-o como um pai extremoso e um marido dedicado, atributos que todos os que com ele privaram, lhe reconheciam. De igual forma, o Mestre revelou, sempre, um verdadeiro interesseem relação aos seus antigos alunos. Ao encontrar-se com eles nas ruas da cidade o Professor quis sempre perceber em que pessoas adultas eles se tinham tornado; em saber das suas vidas.

Apesar de toda a sua modéstia e recato, a dimensão da sua obra atingiu tamanha notoriedade que José Aiveca recebeu a distinção de Comendador. Através da Biblioteca da Página oficial da Presidência da República Portuguesa, que relata a actividade do Presidente Jorge Sampaio, ficamos a saber que na cerimónia de encerramento da Semana da Educação, de 18 a 24 de Janeiro de 1998, o Presidente condecorou algumas personalidades ligadas à educação e ao ensino em Portugal. O professor José Aiveca recebeu a distinção de Comendador da Ordem do Mérito e Instrução. Muitos anos antes de se banalizarem expressões e conceitos como ecologia e ambientalismo, por exemplo, José Aiveca era já um profundo amante e defensor da natureza, dos ecossistemas, e de todas as dimensões o que estes encerravam. Também por isso era Convidado de Honra da Academia das Ciências.

O Professor José Aiveca é, seguramente, uma das figuras maiores do passado recente da cidade de Beja, porém, com um alcance que em muito extravasa as suas fronteiras. Justamente por essa razão merece ser destacado e a sua obra recordada e estudada. A edilidade bejense, bem como outras instituições da cidade, em particular as de índole cultural, têm a responsabilidade de fazer perdurar a sua memória e o seu legado. Porque para além de ter sido uma figura histórica, foi um cânone das boas práticas profissionais e em prol da vida social da cidade. Os bons exemplos devem ser impulsionados e continuados.

 

 

 

 

 

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