Opinião Atual

Janeiro Acabado: um pedagogo em Beja

É comum falarmos de figuras nascidas ou notabilizadas na cidade de Beja pela sua importância histórica, nomeadamente com alguns séculos de distância. No entanto a cidade continuou a produzir, e a acolher, em todas as épocas até aos tempos mais recentes, um conjunto de personalidades ímpares em vários domínios das artes, do desporto, da ciência e do saber, cuja obra, injustamente, tem ficado à margem de uma justa divulgação e conhecimento público alargado. Beja tem inúmeras possibilidades para levar a cabo eventos culturais como jornadas, tertúlias, exposições e conferências em torno de variadíssimas figuras de elevada relevância nacional que não apenas os homenageiam de forma justa, como se constituem, por si só, como importantes pólos de interesse cultural e promoção da própria cidade, posicionando-a junto de um público mais qualificado. Proponho, assim, recordar alguns homens que deixaram em Beja uma marca indelével na esfera do ensino, docência e pedagogia do nosso País. Os Professores Janeiro Acabado, José Aiveca, Carmo Vaz e Santana Castilho. Na crónica de hoje começamos com Manuel António Janeiro Acabado. 

“Manuel era uma criança franzina, ensimesmada, pouco interessada em participar nas brincadeiras dos outros meninos, mais voltada à meditação, às conversas, às narrações de contos e histórias, à contemplação activa do que o rodeava (…). Encantavam-no os relatos das experiências da vida dos mais velhos, os contos populares contados nos longos serões de Inverno, à lareira, na grande chaminé da vasta cozinha da casa paterna ou da dos avós maternos. A mãe fazia-lhe repetir orações, histórias religiosas, pequenas rimas, a que a sua excelente memória correspondia, depois, em pleno.

A morte repentina do pai [em 1893] alterou completamente a vida da família. A criança cedo percebeu que era o ‘homem’ mais velho da casa [tinha uma irmã 5 anos mais nova] e sentiu-se um pouco esmagado pela responsabilidade que lhe caia sobre os frágeis ombros. A mãe surpreendeu-o, um dia, com uma cana nas mãos e de braços erguidos apontando ao céu. Perguntado sobre o que fazia, respondeu que queria bater à porta do céu para chamar o pai!”. Assim nos são relatados os primeiros tempos do jovem Janeiro Acabado, pelo seu filho mais velho, António Manuel Tiago Janeiro Acabado, no livro A Iniciação à Leitura e o Professor Janeiro Acabado – Vida e Obra, Composto e impresso pela Associação de Municípios de Distrito de Beja, em 1993. Esta é a obra de referência sobre o pedagogo.

De acordo com o Arquivo Distrital de Beja, e através do seu assento de baptismo, ficamos a saber que o lustre professor nasceu na aldeia de Pias, Concelho de Serpa, no dia 24 de Novembro de 1888. Era filho de António Mariano Fortes Acabado e de Maria da Conceição Moita Janeiro, e foi baptizado no dia 4 de Dezembro de 1888, na Igreja de Santa Luzia, em Pias. Este importante nome do universo didáctico notabilizou-se, sobretudo, pelo ensino da leitura dos mais novos e dos mais velhos, nas escolas e em casa, pela formação de professores, e pela autoria de uma abundante produção de manuais escolares, com ênfase para a Língua Portuguesa, mas também sobre História e Ciências. Destaca o referido ADB que, “pela sua dedicação ao Ensino e às primeiras letras, tornou-se popular o seu método de ensino que se tornou conhecido como Método Janeiro Acabado.”

O Pedagogo dedicou toda a sua vida profissional às matérias do ensino e da formação, “tanto de alunos quanto de professores. Desempenhou funções de professor do Ensino Primário, Inspector, Vogal do Júri Único dos Exames de Estado do Magistério Primário, Vogal da Junta Nacional de Educação e Presidente do Júri dos Exames de Adultos do Distrito de Lisboa”. Foi fundador da Escola do Magistério Primário de Beja, em [1931 e depois em] 1956, na qual exerceu o cargo de director até à sua morte, em 12 de Fevereiro de 1970.

Conta-nos o filho, através do seu livro, que “algum tempo depois [da morte do pai] Manuel é enviado para a Amareleja, para junto dos avós paternos (…) aliviando a mãe de preocupações relativamente aos seus estudos (…). Em breve entra na escola e logo ali se distingue pelo seu óptimo aproveitamento. Faz com distinção os primeiros exames em Moura e os segundos em Beja, com os mesmos resultados.” Seguiu-se uma reunião do conselho familiar para tomar decisões sobre o futuro do jovem. Uma facção queria-o a continuar os estudos, dando seguimento às suas capacidades intelectuais. Outra parte da família achava melhor que se iniciasse no comércio, uma vez que a situação económica da família era frágil.

A decisão recaiu sobre os estudos, e assim Janeiro Acabado foi enviado para o Seminário de Beja “para se formar como padre”. E foi na instituição eclesiástica que permaneceu até à revolução republicana de 1910, momento em que a alteração da política nacional conduziu ao encerramento do Seminário. Sem alternativas o jovem regressa a Moura e é orientado para uma carreira comercial. Mas estava visto que não era essa a sua vocação, e “Manuel resolve estudar para professor do ensino primário”. Mais uma vez, na companhia da mãe, muda de destino, seguindo para Beja. A Escola Normal de Beja, recentemente criada, funcionava num edifício improvisado ao cimo da rua do Esquível. Mas os estudos revelaram-se uma decepção para o jovem. As leituras que continuou a fazer, bem como os ensinamentos que trazia do Seminário eram muito mais avançados do que os dos seus professores. Ao mesmo tempo era hostilizado pelos colegas por ter sido seminarista, o que nos tempos do apogeu republicano era bastante mal visto.

E assim se dá uma nova mudança de vida Manuel, e da família. Desta vez mudam-se para Coimbra, onde termina os dois últimos anos do curso secundário. Em simultâneo ajuda a família, dando explicações, e prossegue as suas leituras “agora na bem provida biblioteca da Universidade. Termina curso com óptima classificação”. Decide prosseguir os estudos matriculando-se na secção de Clássicas da Faculdade de Letras. Mas os colegas tornavam as aulas demasiado infantis, e a maioria dos professores não conseguia impor-se, continuando os conhecimentos dos docentes bastante aquém dos que ele possuía. 

Decide aprofundar os seus conhecimentos de Pedagogia e Psicologia, enquanto estuda Línguas. Sentindo fugir-lhe o tempo, põe de lado a ideia do curso superior e da carreira universitária, resolvendo regressar com a família a Moura. Contudo, o início da sua vida profissional não foi fácil. “A primeira escola onde é colocado a fazer uma substituição situa-se em Loulé. Acaba por não tomar posse do lugar pelo facto do vencimento lhe não chegar para pagar a pensão [onde dormia]”. Percorre mais algumas localidades, aproximando-se de casa. Parte da família continuava a não creditar na viabilidade da sua carreira de docente e levam-no de volta para o comércio, desta vez numa loja de mobiliário. Manuel faz a vontade ao tio e acumula o trabalho de professor com o de vendedor de móveis até se tornar professor efectivo em São Miguel do Pinheiro, Mértola, dedicando-se, a partir desse momento, em exclusivo, à carreira de ensino. Com o nascimento dos dois primeiros filhos, e a ambição de crescer no mundo da docência, regressa a Beja. E aí parte para a sua notável carreira pedagógica.

Desconheço quando terá ocorrido a última homenagem a Janeiro Acabado, em Beja, mas é bem provável que tenha sido no centenário do seu nascimento, no longínquo ano de 1988. Segundo noticiava o Diário do Alentejo de 18/11/88, preparava-se o decorrer de uma exposição, “de 26 a 29 de Novembro, na Casa da Cultura de Beja, sobre a vida e obra do fundador da Escola do Magistério Primário de Beja”. O jornal dava conta de que haveria, “ainda, dentro de alguns meses, um Simpósio sobre Ideias e Conhecimentos acerca da Metodologia da Leitura, bem como a colocação de lápides alusivas à data.” As várias décadas passadas desde desse dia conduzem ao esquecimento das gerações mais antigas e impedem, sequer, o conhecimento das mais novas. Beja não está a cumprir a sua obrigação de valorizar o legado dos seus e de, através disso, dignificar-se a si própria.

Dessa homenagem, prestada em 1988, resultou a inauguração de uma placa toponímica que lhe deu nome a uma rua em Beja, e um folheto, desatacado através de umas breves notas por José V Ramalho, no Blogue Caminhos do Alentejo, em 2009. Transcrevia o autor da publicação que o Professor, “diplomado pela Escola Normal de Coimbra, que frequentou de 1914 a 1916 (…) dedicou toda uma vida ao Ensino, e de forma especial ao ensino inicial da leitura, de que é prova o seu tão conhecido Método Janeiro Acabado, bem como à formação de professores para o ensino primário, de que é prova a sua responsabilidade na criação das Escolas do Magistério Primário de Beja nos anos 30 e 50”. Esta mesma informação constava, igualmente, do sítio de internet da Direcção Regional de Educação do Alentejo - Centro de Educação Professor Janeiro Acabado. Pesquisando mais aprofundadamente não se descobre, na actualidade dos meandros digitais, mais nenhuma referência a esse Centro da DREA. Mais um prenúncio do desinvestimento no valiosíssimo património deixado por Janeiro Acabado.

O Investigador Hermes C. Coelho Picamilho escrevia na sua rede social, em 30/08/21, com o título Escolas do Magistério Primário em Beja, que a cidade “deve ao Professor António Janeiro Acabado [o facto] de ter tido Escolas do Magistério, [uma vez que, até então] as mesmas foram sempre, oficialmente, negadas à cidade. Quando criou a segunda, em 1956 [a primeira, entretanto finda, datava de 1931, também pela sua mão], com a designação de Escola do Magistério Primário Particular, Beja era a única cidade capital de distrito do Alentejo e do Algarve, sem uma Escola do Magistério. Foi graças à sua determinação e teimosia que, no ano letivo de 1956/57, Beja se viu dotada, mais uma vez, de uma Escola do Magistério.” Convém explicar, com recurso ao livro sobre a sua vida e obra, que “uma Escola do Magistério não era, nem se constituía como um colégio particular, mas sim uma instituição especializada de ensino superior, semi-oficial.”

Acrescenta o investigador que o empenhado Professor instalou a Escola na “Rua do Esquível, no Solar dos Maldonados, que se encontrava em ruínas, com as salas cheias de entulho, os telhados esburacados, o chão de algumas divisões abatido e as janelas partidas e sem vidros. Foi o Professor Janeiro Acabado que, de forma paciente, e integralmente a expensas suas, reconstruiu o edifício”. No ginásio, “dotado de óptimo material, colocou um palco para actividades de expressão [artística]. Quanto ao material escolar foi a Escola do Magistério, o primeiro estabelecimento de ensino em Portugal a utilizar as mesas individuais.” Esta inovação suscitou a “relutância da Inspecção que lhe queria impor as [tradicionais] carteiras. Aliás, uma e outra das escolas possuía flanelógrafos ['quadro, muito usado como recurso didáctico, revestido de flanela, sobre o qual são fixados objectos ou papéis'. In Ciberdúvidas da Língua Portuguesa]; quadros magnéticos (não usados nas escolas oficiais); material audio-visual (gravadores de som, projectores de diapositivos, projectores de opacos, televisão, máquinas de projectar filmes, etc.). Também a metodologia era variada permitindo experimentar procedimentos diversos para que, mais tarde, os pudesse aplicar de acordo com os alunos e as suas necessidades. O material encontrava-se exposto no Centro de Didáctica.”

Em 2016, José R. R. Janeiro publicava na sua rede social uma fotografia da década de 60, com o título “Quem se lembra?”. A imagem mostra uma “acção promovida pela Associação dos Estudantes do Instituto Superior Técnico e pelo Cine Clube de Beja, sobre temática das novas tecnologias aplicadas ao ensino (cinema e outros meios áudio-visuais)”. A conferência decorreu no ginásio da Escola Industrial e Comercial de Beja. O autor faz referência à presença, na terceira fila, na coxia central, do professor Janeiro Acabado, com a “mão no queixo, como era seu hábito, o professor de História no Liceu Nacional de Beja, e também dinamizador do Cine Clube De Beja.” Refere o participante dessa acção, que a “iniciativa ‘mexeu’ com o status quo da cidade, atendendo ao número considerável de participantes e, ainda, ao facto inédito de uma escola oficial receber no seu seio actividades promovidas por entidades consideradas incómodas ao regime. A temática era considerada revolucionária por se tratar de matéria totalmente nova ao serviço do ensino.”

Regressando ao Blogue Caminhos do Alentejo, referido anteriormente, José V Ramalho publica, em Julho 2009, a foto de uma notícia do Diário do Alentejo, de 18 de Novembro de 1988, e que tinha como título “Professor Janeiro Acabado: homenagem no centenário do nascimento do eminente pedagogo alentejano”. Mais abaixo, o desenvolvimento biográfico com o subtítulo “Uma vida inteiramente dedicada à educação e ao ensino”. Neste caso estamos perante um texto cuja fonte é o livro Ensaio Monográfico (Histórico, Biográfico, Linguístico e Crítico) Acerca de Beja e dos bejenses mais ilustres, edição da C.M.B., de 1973. A obra de Manuel Joaquim Delgado, bem como a reprodução quase inteira do DA, reveste-se de particular importância, sobretudo dada a escassez de informação disponível sobre o distinto professor. No que concerne às já referidas homenagens pelo centenário do seu nascimento, o Jornal adensa informação sobre o tema, acrescentando que a “Comissão Promotora da homenagem é formada por antigos alunos da Escola do Magistério Primário de Beja, por professores de diversos graus de ensino, bem como por outros cidadãos.” Refere, ainda, que “as diligências feitas pela Comissão encontraram boa receptividade em vários organismos da região, com destaque para as autarquias. A Câmara de Beja contribuiu com um subsídio de 100 mil escudos.”

Porém, e nos idos anos 80, o DA colocava já o dedo na ferida, parecendo adivinhar que os tempos vindouros não só não deixariam sarar o ferimento como, pelo contrário, aumentariam a infecção. Escrevia o jornal que “numa área do país ainda tão fortemente marcada pelo analfabetismo, o ‘Diário Alentejo’ evoca, com o precioso contributo de vários pedagogos, a obra de um homem desaparecido em 1970.” Estava certo, o Jornal. Contudo, nos dias de hoje o analfabetismo vai muito mais para além do não saber ler e escrever. É, também, a indiferença com que se desconhece o passado. E o desprendimento com que se encara o desinteresse sobre a nossa memória, património e identidade. Não podemos gostar do que desconhecemos. E se não gostamos, não preservamos. Ao não preservarmos estamos, apenas e tão só, a deixar morrer. Neste caso a memória, e com ela a herança, tão rica, da cidade de Beja.

Aos dados já referidos, acrescenta o DA (retirado da referida obra) que Manuel António Janeiro Acabado “era filho e neto de lavradores e comerciantes da região, mas também contava na sua ascendência com letrados professores na Universidade de Évora. Os seus estudos primários decorreram, já com distinção, na Amareleja, em Pias e em Moura (…) Os estudos secundários efectuou-os no Seminário Episcopal de Beja, do qual foi um dos alunos mais brilhantes no curso de Teologia, tendo recebido convite para frequentar a Universidade Pontifícia de Roma.”

O que o jornal não transcreveu, mas que Manuel Joaquim Delgado fez questão de recordar na aludida obra, foi outro texto que o autor havia publicado no DA, em 18/02/70, alguns dias após a morte do Professor, com o título Um grande Pedagogo Desaparece: Janeiro Acabado – mestre do ensino. Escrevia o investigador o seguinte sobre o professor: “Apóstolo inconcusso do ensino, pedagogo exemplar, homem de bem – eis os atributos com que eu defino o professor Janeiro Acabado, recentemente falecido com 81 anos de idade e mais de 50 dos quais dedicados ao ensino e à educação de adolescentes e crianças. Estes atributos, só por si, são razão bastante para que não fique em silêncio uma palavra de saudoso respeito e admiração pelo devotado esforço que, tão abnegadamente, despendeu em prol do ensino e da educação da juventude. Uma vida inteira dedicada ao estudo e ao ensino merece reflexão. Não são muitos os exemplos deste género. Nada mais justo do que fazer justiça; nada mais injusto do que não a fazer".

Adivinhava-se, desde muito cedo, que o futuro pedagogo seria uma referência nacional da didáctica, a área da pedagogia que se ocupa dos métodos e técnicas de ensino. Prossegue Joaquim Delgado: “No ano lectivo de 1913/1914 reiniciou a sua actividade de estudante pela matrícula na Escola Normal de Beja de onde pediu transferência para a Escola Normal de Coimbra, que frequentou de 1914 a 1916, e onde se diplomou. Após isso, matriculou-se ainda na Faculdade de Letras, a qual abandonou para se dedicar ao ensino primário. Ocupou o cargo de professor do ensino primário na Aldeia Nova de S. Bento, Silves, Póvoa de S. Miguel, Baleizão, Beja e Lisboa”. E a sua carreira de docente e mestre educador não mais cessaria.

No seu texto de 1970, para o DA, Joaquim Delgado refere que "as qualidades de estudioso, de professor competente e zeloso, granjearam-lhe a estima e a admiração dos seus superiores hierárquicos. Em breve se viu no desempenho das funções de inspector interino do Círculo Escolar de Serpa (que o foi durante o ano de 1928). Ocupou idêntico lugar, de 1929 a 1933, na Região Escolar de Beja (…) antigo Ministério da Instrução Pública. Estavam, nesse tempo, os Serviços de Inspecção Escolar instalados em duas dependências do 1º andar do edifício do antigo Paço Episcopal, junto do Salvador, contiguas ao Governo Civil, e foi aí que eu conheci o professor Acabado. Mas não era esse o seu lugar. O Serviço de Administração e Direcção do Ensino a nível distrital não o tentavam, mas sim o exercício directo do ensino no contacto permanente com alunos e professores. Esse é que estava na base das suas melhores tendências e inclinações. Assim, não demorou no desempenho desse cargo”. E prossegue no ensaio monográfico: “em 1931 fundou a primeira Escola do Magistério Primário particular de Beja, de que foi Director o dr. Arnaldo Pimenta”, porque Janeiro Acabado, por incompatibilidade de funções (era à data Inspector Principal do Distrito Escolar de Beja), não poderia assumir esse cargo.

Como todo o profissional iluminado, Janeiro Acabado ampliou os limites da sua área de interesse, estudando e produzindo conhecimento sobre diversas matérias relacionadas com a compreensão e aperfeiçoamento da docência. Por exemplo, “enquanto inspector em Serpa e Beja, procedeu a cuidados estudos sobre a orgânica das bibliotecas pedagógicas estrangeiras e efectuou todos os planos para a criação da Biblioteca do Professorado Primário, provisoriamente instalada na Escola do Magistério de Benfica. Igualmente efectuou, durante este período, um vasto inquérito às crianças das escolas do distrito de Beja sobre o desenho e a infância.”

E não tardou em iniciar-se na escrita e produção de compêndios escolares de várias matérias, consubstanciados nos numerosos e eclécticos estudos que levou a cabo ao longo da sua carreira, tendo “efectuado várias conferências e colaborado activamente na Escola Portuguesa”. Mas foi “durante os longos 19 anos em que permaneceu em Lisboa, como professor da escola masculina de Xabregas, que se dedica afincadamente à publicação dos seus livros didácticos e pedagógicos. São trabalhos bem elaborados e com boa orientação pedagógica. Logo se tornam conhecidos nos meios escolares do País. Em 1938 publica o Livrinho para aprender a ler, quiçá, a sua obra didáctica mais importante, aquela que lhe mereceu maiores cuidados e mais devotado interesse. Nela revela o Autor a sua dedicação ao ensino e uma soma apreciável de conhecimentos, em que ensaia um método fundamentado na Psicopedagogia. Esse livro foi publicado em Beja pela firma ‘Carlos Marques & C.ª Ldª.’” É apenas um entre muitos dos seus manuais que ajudaram gerações de portugueses a aprender a ler, mas também a conhecer a História, ou a entender a ciência. “A sua obra didáctica destaca-se não só pela quantidade reveladora de uma vida inteira dedicada ao ensino, mas especialmente pela qualidade [do seu legado] constituído por uma profundidade de conhecimentos e [elevada] fundamentação psico-pedagógica.”

A sua produção literária foi profícua, publicando em 1941 o manual “Ensinemos a Ler, precursor da Campanha Nacional Contra o Analfabetismo. Em 1946 publicou na Criança Portuguesa um estudo sobre ‘a Leitura Inicial e o Globalismo’. Em 1947, com uma bolsa de estudo do Instituto de Alta Cultura, organizou um inquérito sobre o folclore da província da Estremadura no Boletim da Junta e publicou ensaios sobre o conto popular, os quais Ihe valeram elogiosas referências de especialistas nacionais e estrangeiros”.

Com base na publicação de Joaquim Delgado podemos distinguir a obra didáctica do professor em três grupos: “O primeiro é constituído por trabalhos sobre a iniciação da leitura. Compreende material didáctico e as seguintes cartilhas: a) A B C dos Pequeninos; b) Livrinho para aprender a ler; c) Cartilha; d) Vamos ler. Estes trabalhos destinavam-se à educação pré-escolar; ao ensino feito por leigo; ao ensino na escola e aos adultos, para aprenderem por si mesmos. 

O segundo grupo compreende os livros didácticos propriamente ditos. Destes destacam-se: a) Regras de ortografia; b) Gramática; c) História de Portugal; d) Leituras para a 4.ª classe com o respectivo caderno auxiliar; e) Ciências Geográfico-Naturais, etc. 

O terceiro é formado por livros de literatura infantil: 

a) As leituras dos Pequeninos; b) As histórias dos Pequeninos e c) Os contos dos pequeninos.”

Com recurso ao livro de António Manuel Tiago Janeiro Acabado podemos contar mais de três dezenas de obras publicadas dentro destes três campos. As mais importantes, porque foram os alicerces do seu Método, são o Livrinho, a Cartilha e o Vamos Ler. Estes livros são hoje importantes testemunhos históricos do ensino em Portugal, e valiosas peças de museu. De acordo com Manuel Joaquim Delgado, a vasta obra produzida pelo professor acabou, no entanto, ainda durante o Estado Novo, por “cair em desuso, dado a reforma do ensino primário ter simplificando em muito [até demais] os programas de ensino primário elementar, sobretudo o da 4.ª classe, o que contribuiu decisivamente para o desuso dos seus livros.” Contudo, isso não lhe retira nem o mérito nem a importância do seu trabalho em prol do ensino, da alfabetização dos mais novos aos mais idosos, da preparação e instrução dos futuros ensinadores formados na escola que fundou e dirigiu: a Escola do Magistério Primário Particular de Beja.

Segundo o Arquivo Histórico da Presidência da República, “Manuel António Janeiro Acabado, Professor da escola 20, 13ª Zona Escolar” foi proposto, pelo Ministro da Educação Nacional, em 31 de Março de 1956, para o grau de Cavaleiro. “Publicado no DG n.º 137, 2ª Série, de 9 de junho de 1956.” Tal viria a acontecer no dia de Portugal, 10 de Junho, de 1956, quando foi condecorado pelo Presidente da República, general Craveiro Lopes, com o Grau de Cavaleiro da Ordem de Instrução Pública. Na cerimónia, podemos ler no livro do seu filho, o pedagogo destacou “que os povos sem instrução de pouco valem no concerto das nações, como os indivíduos, no agregado social. (...) E como a primeira e principal fase deste plano é o combate ao analfabetismo, lá estão, na vanguarda, o Professor Primário e a Escola Primária.”

Janeiro Acabado nunca pôs termo à sua carreira. Levou-a até ao último dia. Já depois da reforma, e septuagenário, regressa a Beja e para erguer a “segunda Escola do Magistério de que a cidade dispôs por seu intermédio”. Continua a elaboração da sua obra, com especial concentração no material didáctico que complementa o seu método. Organiza, no Magistério, um Gabinete de Material Didáctico abrangendo todas as matérias estudadas no ensino primário, o qual servirá de base ao Centro de Estudos Didácticos, sendo também uma fonte de inspiração para os professores do ensino primário.

Não quero terminar esta revisitação da vida e obra de Janeiro Acabado sem citar algumas passagens e testemunhos da sua neta Estela, também educadora de infância, no seu bogue, que leva o nome do avô, Janeiro Acabado. Sobre o local onde vivia o pedagogo, e a sua família, justamente no primeiro andar do Magistério, no Palácio dos Maldonados, refere a neta que o edifício “foi provavelmente construído em meados do séc. XVI, por iniciativa de uma família local de nome Furtado Mendonça. (…) O edifício, estruturado em planta rectangular, possui nobre perfil renascentista, bem expresso na concepção do pórtico principal e na fina arcada de volta perfeita que se encontra no pátio interior. A grandiosidade da construção e a apetência por uma monumentalidade decorativa, encontra-se também patente a nível do interior. Algumas das salas mais nobres do Palácio possuem tectos de caixotões, encontrando-se estes painéis de cobertura interna revestidos de belas pinturas que remetem para o enaltecimento da fundação da nacionalidade, com representações pictóricas alusivas não só à Batalha de Ourique, como também à coroação de D. Afonso Henriques.”

Não é por acaso que a família guarda estas memórias tão presentes da vida no palácio. Em bom rigor, para eles, a casa, o Magistério, os professores, são todos elementos da mesma realidade: o seu contexto familiar. Noutro texto do mesmo blogue, a neta recorda que “foi neste maravilhoso e majestoso edifício que vivi nos primeiros 9 anos da minha vida. E como essas coisas nos marcam. Foi durante esse tempo, neste ambiente mágico, que alimentei todo o meu imaginário ouvindo as histórias que a avó Rita contava como ninguém. (…) até parecia que acontecia tudo ali, naqueles jardins. (…) Convivíamos diariamente com os futuros professores e educadores e facilmente tínhamos acesso aos momentos de criatividade, ensaios de teatros; preparação de festas; trabalhos na oficina de expressões; jogos; desafios; visitas de estudo, excursões e tantas outras atividades. Dentro deste antigo convento existia também uma pequena quinta com animais, tanque para lavar roupa e um forno a lenha para cozer o pão.”

Alba, outra das netas de Janeiro Acabado, recordava assim, numa composição escolar, o seu avô: “De todas as fotografias, fotogramas e pequenas sequências que estão arquivadas na minha memória, lembro as do meu avô. Um senhor alto, muito magro, de braços grandes que chegavam a tudo e a todos. Tinha um crânio pequeno de onde se destacavam duas atentas orelhas. No seu rosto sobressaíam o seu bigode, o seu nariz fino, os seus pequenos olhos que brilhavam cheios de sabedoria das centenas de livros lidos e cheios de apetite de outros tantos que iriam ler (…) Via-o passeando pelos corredores ladrilhados e frios da Escola do Magistério, onde estavam as salas de aula, e em cujo andar superior vivíamos, atento aos alunos e às preocupações e problemas que tantas vezes ajudava a resolver.”

O mais tocante dos relatos narra o dia da morte do avô, o patriarca do palácio; o pedagogo janeiro Acabado. Conta a então jovem neta que nesse triste final de dia, “grupos de adultos povoavam o enorme corredor e o salão grande, cochichando de caras sérias. De repente, entre a multidão, o esquife. Frio e escuro. Carregavam-no os alunos do Magistério. Os gemidos e choros aumentavam e todos entraram em marcha solene para o grande salão. O corpo ia ser velado. Aproveitando o desimpedimento, eu e a minha prima, ainda arrepiadas, corremos para o meu quarto, também no patamar de cima. O [cão] Tejo, esse, seguiu-nos. Porém, ficou à beira das escadas. Não as subiu e nunca mais as tornou a subir. O cheiro a morte no quarto do dono impediu-o para sempre de tornar a subir àquele patamar.”

Ficamos a aguardar o interesse das entidades da cidade de Beja sobre este homem ímpar e o seu legado. Exposições, colóquios, publicações são excelentes formas de recordar o seu papel e, ao mesmo tempo, de motivar novos professores que tanto carecem de estímulo e de bons exemplos. Esquecer é apagar a memória. E não se constrói o futuro desprezando o conhecimento do passado.

 

Este site usa cookies para melhorar a sua experiência. Ao continuar a navegar estará a aceitar a sua utilização.