Desencanto de uma Vida
Os anos 90 do século passado iniciaram o processo de regressão imposto pelo neoliberalismo triunfante. Quando voltou ao ensino, já nos anos 10 deste século, o que encontrou foi uma espécie de retrocesso civilizacional.
Ele, nas dificuldades da crise de finais da década de 1970, rejeitou um emprego estável como bancário, relativamente bem remunerado na altura. O seu sonho era ler, estudar, frequentar a universidade, tirar uma licenciatura. Assim, com muitas dificuldades, dando aulas e estudando, lá conseguiu formar-se e, depois, profissionalizar-se, adquirindo o estatuto de professor efetivo. Neste percurso, na década de 1980, empenhou-se na luta pela democracia na escola. Com ele, uma geração de professores e professoras desmontaram os princípios teóricos e metodológicos da escola do Estado Novo, impondo uma nova conceção de ensino em que o aluno devia ser o centro da aquisição dos saberes, pelo que o grande papel do professor / professora seria o de criar situações de aprendizagem onde os/as discentes, através da pesquisa e do debate, construíssem o seu próprio conhecimento. À escola de cátedra, fomentadora do ensino dedutivo onde a memória se sobrepunha ao raciocínio, ele contrapôs a generalização do ensino indutivo, que aposta no caminho do exemplo para definição, tendo a experiência como base. As salas de aula passaram a dispor-se sob a forma de U e a discussão entre alunos, conduzida pelo professor / professora, com base na observação do concreto, era a porta aberta para o mundo novo e fascinante do conhecimento. A conceção verificada à saciedade pela psicologia de que a passagem do pensamento concreto ao abstrato é socialmente condicionada, mais que o resultado da maturação biológica, era o guia para a ação.
Os anos 90 do século passado iniciaram o processo de regressão imposto pelo neoliberalismo triunfante, embora ainda revestido de um discurso progressista que, no entanto, a realidade criada de propósito impossibilitava a sua concretização. Frustrado, saiu transitoriamente da escola para seguir outros caminhos. Quando voltou ao ensino, já nos anos 10 deste século, o que encontrou foi uma espécie de retrocesso civilizacional. A formação científica dos docentes tinha regredido por força do processo de Bolonha e da supremacia das chamadas “Ciências da Educação” sobre o saber científico da disciplina. As aulas de cátedra eram hegemónicas e a contradição entre o enunciado do discurso do Ministério da Educação e as condições concretas da sua materialização tinham transformado a escola numa espécie de realidade virtual: discutiam-se alunos, comportamentos, aproveitamentos e condutas que a tutela esperava que existissem, mas que não eram os que prevaleciam na realidade.
Desencantado, isolado no interior da escola, reformou-se. Hoje vive a sua vida repartida entre os livros que vai lendo de forma anárquica, o apoio à mulher na sua doença crónica, com quem se habituou a viver, mas que nunca amou verdadeiramente, a ida diária à biblioteca ler o jornal, as discussões sobre futebol, às segundas-feiras, no seu pequeno grupo de amigos e os longos passeios diários e solitários que dá pelo jardim da cidade onde mentalmente reescreve a sua vida, inventando uma outra, aquela que gostaria de ter vivido feita de aventura e romance. O combate político preenchera-lhe uma vida, mas isso tinha sido curto. Tinha-lhe faltado conhecer o arrebatamento de uma verdadeira paixão. Ao contrário de Pablo Neruda, o grande poeta chileno, nunca poderia dizer “confesso que vivi”.