Opinião Atual

Carmo Vaz. O intelectual de Goa que se apaixonou por Beja.

É uma das autoridades do estudo da Língua Portuguesa da segunda metade do século XX, tendo dedicado toda uma vida ao conhecimento científico da língua de Camões. Foi, ele próprio, um arquitecto da linguística e da literatura, construindo sólido acervo com recurso a essa matéria-prima, qual apurado mestre de obra, dominando, com minúcia e detalhe, o tijolo e cimento da escrita. Daí resultaram a sua própria e extensa produção literária, bem como a tradução para português de grandes obras de poesia e prosa de alguns dos maiores escritores do século XX, como James Joyce, Dylan Thomas, Aldous Auxley, Frank O'Connor, entre outros.

Porém, foram as aulas e, sobretudo, os alunos, as suas grandes paixões. Carmo Vaz foi docente do ensino secundário e superior, depois de obter a sua licenciatura em Filologia Clássica pela Universidade de Lisboa, seguida de pós-graduação na Universidade de Cambridge. Uma parte da sua vida profissional, familiar e social, desenvolveu-a em Beja. Mais uma vez, devido à escassa informação disponível, contactei os filhos, Joana Carmo Vaz, e Miguel Carmo Vaz, que me forneceram diversos e valiosos elementos sobre o seu percurso.

Álvaro Fernando Aleixo Peres de Carmo Vaz nasceu em Pangim, Goa, em 1915, na então chamada Índia portuguesa. Essa era, também, a origem de toda a sua família, abastada, fruto das bem-sucedidas relações comerciais encetadas com Moçambique. Carmo Vaz nasceu no ceio de uma família tradicional católica, mas que, simultaneamente, invocava pertencer à classe brâmane, uma casta sacerdotal, sendo a primeira e mais elevada das quatro castas indianas da sociedade hinduísta.

O futuro professor foi o penúltimo de 10 irmãos (6 raparigas e 4 rapazes), e quando nasceu já tinha sobrinhos. Todas as irmãs desposaram-se com dotes avultados, sendo que os quatro varões se formaram academicamente, obtendo graus académicos do ensino superior. Assim ditavam os costumes da época. Durante a infância e adolescência, Carmo Vaz viveu em Goa, onde concluiu o liceu, aos 17 anos, em 1931, altura em que abandonou a Índia com destino à Universidade de Lisboa, cidade na qual concluiu, com distinção, a licenciatura do curso de Filologia Clássica - Latim e Grego - na Faculdade de Letras.

Como recompensa pelos excelentes resultados académicos, os seus pais, que nunca abandonaram a Goa natal, ofereceram-lhe um ano sabático em Paris. Foi na cidade-luz que Carmo Vaz travou contacto com uma nova realidade política e social. A liberdade, a igualdade de direitos, a cultura democrática que ali vivenciou toldar-lhe-iam, para sempre, as suas convicções. Quando regressava a Portugal, de comboio, vinha munido de inúmeros livros críticos dos regimes ditatoriais, designadamente do fascismo. Foi preso na fronteira pela PIDE, os livros foram-lhe apreendidos, tendo sido, mais tarde, libertado. Começou, neste momento, o seu combate na oposição ao regime salazarista.

A sua primeira colocação como professor liceal ocorreu em Faro, cidade que o acolheu por alguns anos até se transferir para Coimbra onde concluiu a formação em Pedagogia, mantendo-se, de forma ininterrupta, como professor.

Em 1942 fundou a revista de cultura e arte Vértice, em Coimbra, onde colaborou com diversos anti-fascistas. Nesta fase da sua vida, Carmo Vaz estava já profundamente envolvido na luta pela liberdade e democracia, acima de tudo de forma bastante autónoma e independente, conservando amigos de diversos quadrantes partidários. A sua actuação política concentrava-se na defesa da democracia e lutava pela implementação, em Portugal, de um regime democrático liberal, à semelhança dos existentes em França, Reino Unido e EUA sendo, desta forma, um fervoroso combatente do Antigo Regime.

Aquando da visita de Franco, o líder da ditadura espanhola, a Portugal, entre 22 e 27 de Outubro de 1949, Salazar organizou um evento de homenagem ao general espanhol no Teatro Monumental em Lisboa. Carmo Vaz, acompanhado por alguns colegas e amigos, logrou introduzir-se no teatro e fazer um enorme boicote ao evento com assobios, pateadas e insultos. Foi preso, pela segunda vez, pela PIDE. Nesta época já residia em Lisboa e continuava a ser professor de liceu. Pouco tempo depois foi convidado para exercer as funções de professor auxiliar da Faculdade de Letras de Lisboa, mas viu ser-lhe negada a oportunidade pelo parecer negativo da polícia política.

No início da década de 50 transferiu-se para Moçambique, continuando a sua carreira de docente, e deixando boas memórias junto dos seus alunos, amigos e conhecidos. É nessa época que colabora com a revista Actualidades, assinando textos na senda da sua luta contra o regime. A este tempo era já pai de 5 filhos, dois rapazes e três raparigas. Havia casado com Maria Cristiana Cabral Pessoa de Salinas Calado do Carmo Vaz, nascida na Figueira da Foz, e também possuidora de elevada cultura. Os filhos do casal cedo se habituaram a participar em conversas, em casa, onde se abordavam temas que iam desde o Antigo e o Novo Testamento, até ao conflito israelo-árabe, passando por J.F. Kennedy, ou pelo Papa João XXIII, ao som de Beethoven e dos Beatles. E, claro, sempre e todos os dias, se falava sobre “eles”, a entidade “secreta” que designava os partidários do regime. Uma forma de protegerem as crianças, não fossem um dia atraiçoados pela sua curta idade em alguma conversa comprometedora. Durante a infância, e até terem idade para entenderam o contexto, os filhos do casal perguntavam-se sobre quem seriam “eles”.

Em 1958, no decurso da campanha presidencial do General Humberto Delgado, Carmo Vaz foi um mais do que evidente apoiante do candidato. Assim, em conjunto com um grupo de amigos resistentes, decidiu redigir e distribuir panfletos contra Salazar e o Governador-Geral de Moçambique, que tinha acabado de ser nomeado. Para levar a cabo a acção alugou uma avioneta e sobrevoou Lourenço Marques (actual Maputo), lançando os panfletos subversivos sobre a cidade. Como seria de esperar, quando a avioneta aterrou foram detidos pela PIDE, que os aguardava na pista do aeródromo. Ficou vários meses detido em Lourenço Marques, tendo sido alvo de um processo disciplinar e expulso da função pública. Devido ao incómodo que a sua conduta causava ao regime, o Governador-Geral decidiu-se pela sua expulsão do território.

Antes disso, ainda na cadeia, em Lourenço Marques, Carmo Vaz ministrava aulas de Português, Inglês, História, entre outras disciplinas, aos demais prisioneiros que o solicitassem. E todos os dias jogava xadrez. Segundo a filha Joana, “nem que fosse contra ele próprio”. De resto, o xadrez foi sempre uma marca na vida de Carmo Vaz. Segundo Joana Vaz, “toda a vida houve revistas de xadrez em nossa casa, sendo que ele nunca rejeitava um desafio para uma partida, tendo mesmo sido campeão nacional”.

Com a expulsão de Moçambique a família regressou a Portugal em 1959, ficando a viver em Lisboa. O sustento provinha das explicações que Vaz ministrava, e das traduções que produzia. Foi nessa época, no início dos anos 60 que, numa viagem pela Europa, com a mulher, que Carmo Vaz escreveu e publicou o seu primeiro livro intitulado “Regresso ao Velho Mundo”.

É depois desse livro dado à estampa que o autor concorre para professor da Escola Industrial e Comercial de Beja. Era uma forma de conseguir aumentar os rendimentos familiares, aproveitando para dar explicações a alunos do Liceu da cidade.

Porém, antes de saber do resultado do concurso, no início dos anos 60, Carmo Vaz rumou a Goa para visitar a mãe e as irmãs que lá continuavam a viver, sendo que o seu pai havia já falecido há alguns anos. Dias depois de voltar dessa viagem dá-se a invasão de Goa e a tomada do poder do território pela chamada Grande Índia. Carmo Vaz juntou-se a outros goeses e foram pedir satisfações a Salazar pela incúria a que tinha votado o território. Conseguiu chegar ao contacto com o Presidente do Conselho, o qual decidiu “perdoar-lhe” o “crime” de Moçambique e readmiti-lo na função pública, lavrando despacho nesse sentido, mas impondo a proibição de ficar a viver em Lisboa.

E assim, em 1962, a família muda-se para a capital Baixo-alentejana. A sua filha Joana Vaz refere que os seguintes oito anos em que a família viveu em Beja foram tempos muito felizes. A par das aulas de Português e Francês que ministrava na ECIB, o professor dava explicações de Latim, Grego, Português, Francês, Inglês e História aos alunos do Liceu Nacional de Beja. Também realizava recursos de notas nas épocas dos exames nacionais, uma área na qual obteve grande sucesso. O êxito do seu trabalho tornou-o, por isso, muito requisitado “pelas elites de Beja para lhes dar lições de cultura geral, instruir na prática da conversação e da escrita, indicar os livros que deviam ler, ensinar línguas, regras de ‘etiqueta e boas maneiras’ e, claro, xadrez.” A grande maioria dessas pessoas ficaram-lhe gratas e muitos ficaram seus amigos.

Em Beja, a família vivia na Rua de S. Tomé e Príncipe, sendo vizinhos próximos da casa do grande pedagogo José Aiveca. A casa de Carmo Vaz situava-se nas traseiras da Escola Industrial e Comercial, sendo comum os filhos, e os amigos, saltarem o muro para brincar no recinto da escola. A propósito destes tempos, Joana Vaz recorda a seguinte história:

“Um dia, estávamos pendurados no portão, e passaram dois senhores na rua. Começámos, malcriadamente, protegidos pelo grupo, pelo portão e pelo muro, a gozar com eles e a chamar-lhes ‘lá vai o bucha e o estica’! Os homens, que passavam muitas vezes na nossa rua, foram bater à porta da nossa casa e levaram o meu pai sob detenção. Eram dois agentes da PIDE que consideraram que nós, filhos, os insultávamos, a pedido do meu pai. Ficámos muito consternados e entranhou-se-me o medo do ‘eles’.”

Toda a família, com a excepção de Maria Cristina, mulher de Carmo Vaz, adorava a nova vida em Beja, bem como o mundo novo que se lhes abria no Baixo Alentejo. Os hábitos mais fechados de uma cidade, talvez demasiado interiorizada no início dos anos 60, apresentavam-se escassos para as necessidades de abertura mais cosmopolita da matriarca do núcleo familiar. Era comum aos fins-de-semana a família partir ao conhecimento das vilas e aldeias em redor de Beja. Sobre estas povoações, conta Joana Vaz, que “conheci todas e cada uma em profundidade. Onde chegávamos, o meu pai perguntava no café ou no restaurante, quem nos podia abrir a porta da igreja, da capela, da casa senhorial, e quem nos podia contar a história do povoado. Fiquei com parte da minha alma no Alentejo e mantenho o convívio com muitos colegas e amigos que lá fiz; eram amizades próximas e muito gratificantes. (…) Eu sou a que fiquei com mais raízes porque talvez seja a mais sentimental.”

Carmo Vaz e Maria Cristina foram pais de uma filha em Faro; outro nasceu-lhes em Coimbra, os três seguintes em Lourenço Marques e o mais novo em Beja. Nessa fase a família já não vivia com todos os filhos. Os dois mais velhos ficaram em Lisboa, a prosseguir os estudos. Quando chegou a Beja, o casal levou consigo três filhos. O quarto, e último, nasceu no “Hospital Velho” da cidade, em 1969. Tiago Vaz adorava Beja, estava a tirar o curso de engenheiro agrónomo e tencionava voltar quando pudesse. Havia ficado em Angola depois da independência do País, a trabalhar no sector petrolífero. Infelizmente não mais tornaria a Beja, como era seu desejo. Perdeu a vida precocemente, aos 41 anos, em Luanda.

Durante os anos em que viveu na capital baixo-alentejana, mas mesmo depois de deixar a cidade, e em virtude da importância que detinha no meio intelectual e científico, Carmo Vaz foi entrevistado por vários órgãos de informação, tendo um deles sido o Jornal Diário do Alentejo, em 30 de Março de 1990, trabalho levado a cabo pelo jornalista Manuel Geraldo, uma referência do jornalismo nacional, e igualmente escritor, nascido na Salvada, Beja.

Digna de registo é, de igual forma, a introdução com que Geraldo inicia a peça, referindo o papel que Carmo Vaz desempenhou na cidade, destacando que “foi uma figura marcante na tomada de consciência estudantil, em Beja, na década de 60. Professor de Português, linguista, com textos dispersos por importantes jornais e revistas, nacionais e estrangeiras, ninguém pode ficar indiferente ao discurso deste mestre da dialética pedagógica, formador de gerações, porque rebelde e de retórica insubmissa.”

Havia, de facto, a consciência, de que em Beja vivia uma figura marcante da cultura e da ciência linguística nacionais. Mas a importância do homem nunca se sobrepôs ao mérito e reconhecimento com que o mesmo olhava para as gentes com quem se cruzava e convivia em Beja. Nesse trabalho jornalístico, referia o pedagogo, que “de Beja, onde vivi com a minha família de 1962 a 1969, a recordação viva que melhor guardo no coração, na inteligência, e na memória, são os Alentejanos.”

Mais à frente, questionado por Manuel Geraldo sobre a grande actividade cultural que Carmo Vaz havia desenvolvido durante os 8 anos em que residiu e trabalhou em Beja, o professor recordava os “anos a fio” em que escreveu, todas as semanas, "5ª Coluna", no semanário referência de Beja e do Alentejo, o DA. Igualmente referia guardar “uma memória comovida do meu querido amigo Mello Garrido; trabalhei ombro a ombro com esse brilhante jornalista que é José Moedas, fiz crónica, reportagem, uma longa série de ensaios sobre Educação, bom, fui pau para toda a obra em Beja.” O professor também desenvolveu, em Beja, a actividade publicitária. Era comum, nestes anos, este campo da comunicação ser trabalhado por homens das letras, oriundos dos meios literários, escritores, sobretudo poetas, como o foram, no seu tempo, Fernando Pessoa, ou Alexandre O’Neill, antes da actividade se tornar autónoma e com redactores criativos profissionais especificamente formados na área.

Com grandes nomes conviveu e trabalhou Carmo Vaz, no Diário do Alentejo, para além de Manuel Geraldo. Mello Garrido havia sido Director do Diário do Alentejo e do Alentejo Ilustrado de 1975 a 1976, e de acordo com o sítio de internet História e histórias dos Mello Garrido foi, igualmente, jornalista e escritor, tendo colaborado em inúmeras publicações. “O último artigo que escreveu foi no Jornal A Capital e intitulava-se "D. José do Patrocínio - O Bispo Soldado". Escreveu, ainda, os livros "Catarina Eufémia - A Grande Dúvida de um Drama" e "O Assalto ao Quartel de Beja". Foi Presidente da Junta de Turismo de Beja e Director da Alliance Française, também de Beja.” Já José Moedas, cujo filho chegou a Comissário Europeu e Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, foi outro histórico jornalista e escritor, que integrou o jornal em 1956 para desempenhar o cargo de chefe de redação durante alguns anos, e se manteve como homem e jornalista de referência daquela instituição, assinando durante longos anos a sua coluna no jornal intitulada “Vento Suão”. 

Foi grande o envolvimento de Carmo Vaz na vida cultural da cidade. Segundo relatava na sua entrevista ao DA, foi o organizador e curador de uma Exposição de Arte num celeiro, em Beringel, com trabalhos de pintores amadores, “entre os quais até figurava o Juiz Corregedor, o gerente do BNU, discípulos meus na Escola Industrial e Comercial [de Beja], e um grande artista, um talento raro que já dominava uma técnica invejável, o Carlos Montes (…) que morreu muito novo. Era trabalhador da construção civil e, como bem pode imaginar, não tinha ninguém com meios para isso, que o apoiasse. Possuo dois quadros seus e duas telhas por ele pintadas, que considero pequenas maravilhas.”

Carlos Montes dos Anjos, que nasceu em Beja em 1931, foi uma referência da pintura da cidade de Beja, tendo exprimido a sua arte através de várias técnicas como carvão, cera, pastel, óleo e esmalte. No blogue carlos-montes.blogspot.com ficamos a conhecer algumas das obras de arte do artista que “não se limitou apenas à pintura, mas estendeu também o seu estudo ao domínio da escultura e da gravura." Escrevia o Alentejo Ilustrado de 6 Maio de 1971, sobre o artista, que "embora reconheça ter sido muito Influenciado por (Seurat e Gauguin), nunca se fixou em corrente alguma. No entanto o pintor diz-nos: ‘sei porque pinto, exprimo as minhas impressões e tento superar a comunicação que nos é imposta’. A sua obra reparte-se em diversos enquadramentos desde a Pintura Académica, Neorrealista e Surrealista." Montou o seu ateliê de pintura numa casa da Rua da Branca, no coração da Pax Julia, à qual deu o nome de “A Barraca”. O Espaço Montes constituía-se, ademais, como galeria de arte onde os artistas bejenses podiam expor as suas obras, mantendo as portas abertas aos visitantes da comunidade. Anos mais tarde esse espaço reabriu como o Café A Colmeia, permanecendo nas suas paredes, até aos dias de hoje, 4 grandes painéis de sua autoria que merecem ser visitados, mas que estão, infelizmente, a carecer de urgentes cuidados especiais pela degradação a que estão sujeitos, correndo sério risco a sua preservação. A edilidade bejense tem a obrigação de cuidar do seu património cultural e identitário, e este é um caso premente.

“Toda a obra [de Montes] denuncia bem um pintor com sede de liberdade e de harmonia.” Durante os 24 anos em que pintou [o artista desapareceu precocemente aos 43 anos], deixou um espólio de “mais de 200 quadros e esculturas, [numa produção quase compulsiva] disperso por variadíssimos locais e colecções particulares, concentrando-se parte significativa em Beja, na posse da sua esposa e filhas.” Com várias exposições em Beja, Lisboa e Évora, “a Câmara Municipal de Beja prestou-lhe uma merecida homenagem em Setembro de 1988 com uma exposição na [entretanto, infelizmente encerrada] histórica Galeria dos Escudeiros, mas que de pouco serviu para retirar o pintor do esquecimento em que se encontra injustamente.”

De resto, Carmo Vaz utilizou, justamente, uma gravura da autoria de Carlos Montes como capa, virtuosa, de uma publicação concebida por si: um Guia da Cidade de Beja, encomenda da Câmara Municipal, à época liderada por Joaquim Vilhena. A obra foi lançada em 1966, aquando da inauguração do monumento de homenagem ao bandeirante no Brasil, António Raposo Tavares (São Miguel do Pinheiro, Mértola, 1598) e das Piscinas Públicas de Beja e representa, precisamente, o famoso bandeirante, tendo como pano de fundo o casario da cidade com destaque para as cúpulas altas das suas torres sineiras. Carmo Vaz referia que existiam, no património cultural e artístico de Beja, algumas joias que são das mais belas e impressionantes de Portugal.

Porém, Carlos Montes não foi o único artista plástico a contribuir com um trabalho de sua autoria para a capa de uma obra de Carmo Vaz. A Manuel Geraldo, o filólogo contou que, quando chegou a Beja, em 1962, acabara de editar um livro de crónicas, o anteriormente aludido “Regresso ao Velho Mundo” (título, muito provavelmente, inspirado na obra “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Auxley, autor que Vaz traduziu) com uma capa de um artista de Beja, o arquitecto e artista plástico Norberto Coelho que, para o efeito, desenvolveu um bonito trabalho, em tons de azul, inspirado no modernismo do pós-Guerra, muito alinhado com o seu tempo e com o movimento moderno internacional.

De regresso à entrevista ao DA, Carmo Vaz afirmava sentir-se emocionalmente muito ligado a Beja. Na cidade, garantia ter deixado “muitos amigos do coração. Além de tudo mais, nasceu-me cá um filho (…), e as irmãs mais velhas escolheram o nome de Tiago (…) e que nasceu na Freguesia de Santiago Maior. Não havia eu de amar Beja?!”

O professor e linguista afirmava que gostava de “acabar os seus dias nessa ‘planície heroica’, como escrevia o Manuel Ribeiro” [destacado escritor, poeta e relevante figura política na Primeira República Portuguesa, nascido em Albernoa, Beja, em 1878]. Contudo, explicava, a intensa vida activa que sempre manteve, foi adiando continuamente esse projecto.

A vida rica do professor fê-lo cruzar-se com prestigiados nomes do passado recente da história de Portugal, como foi o caso já abordado de Humberto Delgado. Conheceu o General “quando ele era Coronel e director da Aeronáutica Civil. (…) No rescaldo das eleições roubadas ao General sem Medo, em Lourenço Marques, em 1959, o jornalista da BBC António de Figueiredo, eu, e muitos oposicionistas, lançámos um panfleto condenando o impasse do colonialismo e o escândalo mundial da ditadura portuguesa”, um episódio que atrás foi recordado.

Das memórias dos tempos passados em Beja, recorda “gente muito simpática, generosa e pronta a ajudar o próximo. Conheci dois Bispos, de quem fui muito amigo. Vivem cá os meus compadres, o Biker da Costa e esposa (…), e “o meu amigo, Leonel Cameirinha, o grande empresário de Beja”. Carmo Vaz confessou que muito gostaria de ter feito, em Beja, “uma palestra ou conduzido um colóquio sobre linguística, em geral, e o falar alentejano em particular”, lamentando nunca ter recebido um convite para o efeito, e acrescentando que “vivos e mortos esquecem breve.”

O linguista era um dos apoiantes da tese de Mascarenhas Barreto, destacado investigador das origens de Cristóvão Colombo, e que lhe atribuía a nacionalidade portuguesa, indicando-lhe como berço Vila Alva, no concelho de Cuba. Apesar de conhecer “todo o Baixo Alentejo como a palma da mão”, o escritor considerava Cuba como “uma das terras mais acolhedoras e simpáticas do Alentejo”, e onde guardava velhos amigos. Carmo Vaz recordava um episódio passado na vila, durante uma festa popular, quando actuou, em trio, tocando o seu acordeão, em conjunto com “o mestre acordeonista Barão, hoje doutor em Direito, e o [arquitecto] Norberto Coelho”.

A entrevista assinada por Manuel Geraldo era encimada pelo título “Carmo Vaz, um professor que revolucionou o ensino dos anos 60 em Beja”. A peça ocupava uma página inteira do DA e tinha, como pano de fundo, uma fotografia com um conjunto de 6 jovens a tocar acordeão, numa seara de trigo, com um moinho atrás, e leva a seguinte legenda: “jovens casapianos da célebre orquestra do Padre Fatela, todos eles alunos do Professor Carmo Vaz, na Escola Industrial e Comercial de Beja. O próprio Professor Carmo Vaz era, também ele, um exímio tocador de acordeão.” Na caixa onde se inseria o texto introdutório do entrevistado, podia ler-se, ainda, “quantos não o recordam com saudade, qual "pedrada no charco” atirada para deserto de vozes que era a Pax Júlia do nosso descontentamento. Dinamizador de tertúlias, que tinham cafés como Luiz da Rocha como pontos de referência (…) numa altura em que a maioria dos professores, tanto do Liceu como da Escola [Industrial e Comercial de Beja, hoje Secundária D. Manuel I], eram personagens cinzentas, equidistantes dos alunos, defendendo ideias amorfas do alto das suas cátedras fechadas.”

Carmo Vaz foi, ainda, colaborador assíduo do Seminário de Beja, bem como da paróquia, envolvimentos que se deveram ao facto de ser uma pessoa marcadamente religiosa. A sua filha recorda, ainda, a presença dos pais no famoso Baile do Palito que, a par do Baile do Alfinete, constituíam dois momentos marcantes para as debutantes da cidade, organizados pelo Clube da Sociedade Bejense, na Rua do Touro (e que por vezes coincidiam com o Baile da Festa do Galo, dos estudantes do Liceu Nacional de Beja, por ocasião do Carnaval), e ao qual os seus “pais iam para dançarem, algo de que gostavam muito”.

A família deixou a cidade de Beja, 8 anos volvidos, em 1969. O motivo foi a oferta, feita a Carmo Vaz, para continuar as suas funções de professor em Luanda, e com a garantia de que seria nomeado Director da Biblioteca Nacional de Angola, um cargo que sempre o seduzira. Outros motivos pesaram para deixar a vida que tinha em Beja. As condições salariais, bem como o modo de vida eram atractivos, juntando o facto dos Carmo Vaz terem muita família em Angola e, como já foi referido, Maria Luísa estar um pouco cansada dos costumes bejenses dos anos 60, entre os quais a sua filha destaca o de “ser das poucas mulheres que iam ao Luiz da Rocha tomar café” sozinha. Contudo, o afastamento físico de Beja não implicou um corte nas relações com a antiga Pax Julia. A filha Joana recorda que o pai “manteve sempre uma relação emocional com Beja, com o Alentejo e com os seus ex-alunos, com quem se correspondia e cujas progressões na vida acompanhava com prazer”. E acrescenta que “guardo maravilhosas recordações da cidade e pode dizer-se que mantenho muitos mais amigos em Beja do que em Luanda. (…) Vou a Beja com frequência e, por ironia, uma prima veio a casar-se com um amigo nosso da infância e adolescência, e foi viver para Beja. (…) Visito regularmente a minha prima e outras amigas.”

Em Luanda, Carmo Vaz foi professor no Liceu Salvador Correia e no Liceu Masculino Paulo Dias de Novais. As suas funções eram mais as de professor substituto, ou de reforço de equipas, porque a grande parte do seu tempo era dedicado à Biblioteca Nacional de Angola, através da organização e difusão de projectos culturais e sempre relacionados com a Língua Portuguesa. Esteve, ainda, associado à Universidade de Letras de Sá da Bandeira. Era também assíduo colaborador de diversas publicações angolanas, nas quais assinava crónicas e artigos em colunas de opinião.

Joana Vaz recorda um episódio insólito que se passou com o pai, em Luanda. Depois de tanto ter defendido a auto-determinação das ex-colónias, um dia, “por ter procedido à correcção do português de um dirigente do MPLA, já depois da declaração unilateral da independência angolana, e de ter publicado essa correcção no jornal Província de Angola, com o qual colaborava, foi preso pela polícia política, DISA [Direcção de Informação e Segurança de Angola], e ficou nas abomináveis prisões do apregoado movimento de libertação por mais de 6 meses. Foi um período muito difícil para toda a família porque Portugal ainda não tinha reconhecido o Estado Angolano e não tínhamos forma de negociar a sua libertação. Quando finalmente o soltaram e o enviaram de avião - mais uma vez expulso - estava muito abatido, muito magro, mas sempre vibrante e cheio de vigor.”

Já em Portugal, depois da experiência angolana, viveu até ao fim da sua vida na cidade de Almada. Contudo nunca deixou de intervir no espaço público e académico. Colaborou com a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e nunca deixou de participar em simpósios, formações, congressos, entre outras intervenções de índole sociocultural.

Já aqui se disse que, tal como em tantos outros casos, também neste se revela difícil encontrar informação on-line sobre mais um vulto da cultura nacional. Existem, no entanto, dois sítios na internet que referem Carmo Vaz. O blogue Assim Mesmo (2005-2011), de Hélder Guégués (revisor e tradutor e autor, entre outros, do livro “Em Português, Se Faz Favor”, (Guerra e Paz Editores, 2015); do blogue Linguagista, desde 2011, e do sítio A Galeria dos Goeses Ilustres, da autoria de Artur Vaz. O primeiro refere-se ao nosso autor numa publicação no blogue Assim Mesmo, sobre a Língua Portuguesa, em 26 de Outubro de 2008, com o título “Injustamente Esquecido”, e o segundo versou sobre o pedagogo, na sua página, em 29 de dezembro de 2020.

Em ambos os casos a informação é reduzida, sendo até redundante, permitindo-nos, contudo, retirar algumas informações. Ali ficamos a conhecer alguns dados sobre a vida e obra do professor, como o facto já referido de ter sido fundador e director da revista Vértice, em 1942, em Coimbra, uma publicação especializada em cultura e arte, tendo, também, dirigido a anteriormente citada revista Actualidades, nos anos 50, em Lourenço Marques. Já na década de 60 do século XX, e durante a sua permanência na capital Baixo-alentejana, é-nos dado a conhecer que foi director e professor da filial de Beja do Instituto Britânico. Os mesmos sítios digitais referem as suas já abordadas funções de director da Biblioteca Nacional de Angola, bem como o prémio que recebeu pelo ensaio no "Centenário d'Os Lusíadas", nos anos 70, destacando-o como um “profundo conhecedor da Língua Portuguesa, e responsável pelos cursos de actualização da Língua e Cultura Portuguesa, no Ginásio Clube do Sul.”

É também sublinhado, por estas duas páginas digitais, o facto de o professor ter estado sempre ligado ao movimento editorial, com variadíssimas colaborações com inúmeras publicações na imprensa estrangeira e nacional, onde se destacam, para além das já referidas, o Diário do Alentejo, o Diário Notícias de Lourenço Marques, Heraldo (de Goa), Diário de Lisboa, Diário Popular, Tal & Qual (segundo Melo Garrido, dizia-se, em Lisboa, que a sua coluna semanal “Palavras”, neste jornal, era das mais lidas da Imprensa lisboeta), o Diário do Sul e o Jornal de Almada. O autor mantinha, igualmente, uma intervenção semanal no “Jornal da Manhã da” RTP1, sobre a língua portuguesa. Carmo Vaz foi, igualmente, fundador de 3 editoras, tendo a última sido a Livrangol, Editores Luanda”.

Da sua obra literária (autoria e tradução), as fontes consultadas realçam publicações como a tradução, nos anos 60, do séc. XX, da obra monumental (em fascículos) da “Antologia do Moderno Pensamento Católico”; tradução da versão portuguesa de “Angola on the Road to Progress”, de Michael Chapman (Angola Consultores,1971) com o título em português “Angola no Caminho do Progresso”; a obra “Regresso ao Velho Mundo”; as gramáticas “Linguística Portuguesa - Primeiro Código de Escrita” (Editora Portuguesa de Livros Técnicos e Científicos, 1981) e Código de Escrita - Linguística Portuguesa, (Livros Técnicos e Científicos, 1983); “Português para Todos” (Círculo de Leitores, 1990); “Linguística para Todos” (Círculo de Leitores, 1992); “Estruturas Básicas da Frase Portuguesa” e “Viagem à India e Goa na Memória” (Publicações D. Quixote, 1998) este em co-autoria com José Nascimento.

 Ao DA, na referida entrevista, o escritor referiu que estava a preparar um livro de crónicas intitulado “Abril em Sol Maior”, para que os jovens não se esquecessem das lágrimas, suor, e até sangue, que os seus avós derramaram para reconquistar a liberdade perdida. Infelizmente não viveu tempo suficiente para o dar ao prelo. Todavia, a produção literária de Carmo Vaz foi robusta. A acrescentar aos trabalhos já elencados, Joana Vaz refere, ainda, a tradução para a língua inglesa da obra de Jorge de Sena, tendo assinado o prefácio de alguns deles. Da mesma forma foi um dos tradutores, para a língua de Camões, da obra em três volumes da autoria de vários escritores “Contos Ingleses Modernos” (Lisboa; Editorial Gleba, 1945).

Ao pesquisar informação sobre o filologista é natural que nos cruzemos com o nome de outro Álvaro Carmo Vaz. É, assim, justo, que se desambigue a relação entre ambos. Álvaro Carmo Vaz, engenheiro especialista em barragens e professor catedrático na Universidade Eduardo Mondlane, em Moçambique, e homónimo do professor é, afinal, seu sobrinho. Na página de internet do Instituto Superior Técnico de Lisboa, instituição onde se doutorou em Hidrologia e Recursos Hídricos, em 1985, pode ser consultado o seu vasto currículo no âmbito da engenharia hídrica. Possivelmente pela diferença de idades, as referências sobre o engenheiro são abundantes nas pesquisas, ao invés da parca informação que consegue recolher-se sobre o linguista, seu tio. Sobre o engenheiro, conta Joana Vaz que “o meu primo Álvaro Carmo Vaz, professor Universitário em Maputo vem, de propósito, aos nossos convívios familiares, que passámos a organizar há dezenas de anos”, para a família cimentar os laços, mitigando a dispersão geográfica dos seus elementos.

Joana Vaz define o seu pai como “uma pessoa carismática, brilhante, de uma inteligência ímpar, e com um discurso persuasivo e belo. Também era bom amigo dos amigos e sempre pronto a ajudar todos os que dele precisassem. Com os filhos era exigente, mas tolerante, e conseguíamos discutir qualquer tema com ele. Eu sempre tive uma grande cumplicidade com o meu pai (…) que era a alma e a alegria dos convívios familiares que reuniam, e continuam a reunir, dezenas de descendentes do Carmo Vaz de Goa.”

Carmo Vaz sempre teve muitos amigos, com quem mantinha relações de grande proximidade. “Foi assim que tive oportunidade de conhecer inúmeros artistas plásticos, homens da cultura, políticos, entre outras personalidades”. Fruto dessas relações de amizade, surgiu o seu leve envolvimento partidário com o Partido Socialista, “apenas ser muito amigo de Almeida Santos, de Salgado Zenha e de Mário Soares”, tendo sido deste último que partiu o convite para a filiação partidária. Contudo, conta Joana Vaz, “a sua militância no partido foi sempre muito crítica e bastante independente.”

Carmo Vaz sempre adorou a liberdade. Lutou por ela e ainda teve oportunidade de usufruir dessa feliz condição por largos anos. “A família, quer a nuclear quer a mais alargada, sempre teve grande importância para o meu pai. Viveu intensamente”. Teve dias bons, dias maus, dias muito bons e outros horríficos. “Mas era um optimista com capacidade de ironizar sobre praticamente tudo, e de nos fazer rir”. Nunca abdicou dos seus passatempos preferidos: o xadrez, o bridge, o ténis, as leituras e os estudos, e a escrita.

Em publicação na Galeria dos Goeses Ilustres, podemos ler que “solidário e afável, Carmo Vaz possuía sempre um sorriso aberto e sincero. Escolheu Almada para viver, em 1976, onde viria a falecer no dia 21 de Abril de 1994, deixando um profundo vazio no meio intelectual almadense”. O município deliberou, em 6 de Junho desse ano, a atribuição, a título póstumo, da Medalha de Ouro de Mérito Cultural.

Em Beja, a única homenagem proveio da Associação doa Antigos Alunos da Escola Industrial e Comercial que organizou, em Maio de 2017, “uma homenagem lindíssima”, que deixou para a posterioridade uma placa alusiva à efeméride no átrio da actual Escola Secundária D. Manuel I, de Beja. Tal como em muitos outros casos, também o de Carmo Vaz, figura notável que deixou marca na cidade, merecia mais da parte das entidades responsáveis do município de Beja. Como o próprio referia, com a razão dos que sabem, “vivos e mortos esquecem breve.” Não deveria ser assim. Não tem de ser assim.

 

 

 

 

Este site usa cookies para melhorar a sua experiência. Ao continuar a navegar estará a aceitar a sua utilização.