Há vidas assim...

A Banalidade do Mal

Para espanto do livreiro, que havia uma semana que ouvia este discurso racista e xenófobo, os outros lojistas anuíram à ideia. Estava siderado.

Desde que recebeu a notícia de que ia surgir no Centro da cidade, ao pé da sua loja, um “Centro de Alojamento de Emergência Social”, ela não mais conseguiu deixar de pensar no assunto. Nos grandes intervalos que tinha no trabalho, já que os clientes eram poucos, este era o tema de conversa que entabulava com os outros comerciantes que o sol luminoso de fim inverno convidava a virem à rua, cada vez mais despovoada de potenciais compradores.

Quanto mais pensava no assunto menos se conformava com o que estava prestes a acontecer. Não bastava ter de se cruzar diariamente com aquela gente feia, porca e má, como ela apelidava os imigrantes que residiam temporariamente na cidade, como ainda tinha de ver nascer junto ao seu negócio um espaço que os juntaria em magotes, bem como a essa pobreza indigente de que tinha nojo: alcoólicos e drogados.

Filha de assalariados rurais com uma vida dura, paredes meias com a miséria, desde cedo que não só tinha renegado esse passado como os próprios pais de quem sentia vergonha, chegando mesmo a apresentá-los em público, quando dessa situação não tinha escapatória, como vizinhos da rua onde morava.

Percebia que os imigrantes eram necessários, como lhe tinha explicado um amigo do seu marido, gestor de uma empresa proprietária de um olival intensivo: eram bons no trabalho e ganhavam pouco, o que era excelente para o lucro do patrão. Por outro lado, dava-lhe jeito os 2 mil euros por mês que recebia, sem ter de passar recibo, da renda de uma casa muito degradada que tinha no centro da cidade, herança do marido, onde viviam 20 indianos em condições infra-humanas.

Tudo isto ela percebia, até porque não tinha contacto direto com os seus inquilinos. Recebia o dinheiro da renda por intermédio de um português, um girasso na sua descrição junto das amigas que, segundo se dizia, cobrava aos 20 indianos 4 mil euros pela residência. Agora, um local de alojamento de emergência junto ao seu estabelecimento é que não podia ser. E na voz afetada, que desde há alguns anos usava por julgar ser “chique”, dominava assim a conversa com os outros comerciantes: “vizinhos, não podemos ficar quietos. Eu, por mim, não vou ficar. Um centro de maltrapilhos junto à minha loja, às nossas lojas, nem pensar. Quem terá vontade de vir aqui, ao centro da nossa cidade, se o que encontrará será só gente porca e feia? Ninguém. Não que eu seja contra estes imigrantes que estão a vir para o Alentejo. Não, não sou. Um dia destes até disse ao Francisco, um amigo do meu marido, que é gerente de um grande olival aqui perto: Ó Francisco, você que tem ideias giras, porque é que não aloja os seus trabalhadores imigrantes numas barracas junto ao olival? Essa gente até ficava aí melhor, tá a ver? Não gastava dinheiro em moradias e até podia fazer, assim, umas hortas e semear um monte de coisas. Assim uma vida mais ecológica. Eu até tenho uma casa alugada aqui no centro a uns indianos, mas é só por caridade. Já disse ao vereador, que é meu vizinho, com tanto terreno em redor da cidade porque é que a câmara não instala aí uns pré-fabricados para meter lá essa gente. Eles iam adorar. Era, assim, uma coisa mais próxima da vida que tinham lá na terra de onde vieram. Sabem, parece que este local de alojamento também será para gente nossa, mas totalmente desqualificada, alcoólicos e drogados. Tão a ver o aspeto com que ficarão as ruas onde estão as nossas lojas, não estão? Temos que fazer qualquer coisa. E que tal uma abaixo-assinado contra o tal centro?

Para espanto do livreiro, que havia uma semana que ouvia este discurso racista e xenófobo, os outros lojistas anuíram à ideia. Estava siderado. Quando ele propôs aos seus vizinhos comerciantes que se constituísse uma comissão que fosse à câmara municipal queixar-se da ruína dos negócios, resultado do despovoamento do centro da cidade, fruto de uma política camarária não alinhada com os interesses dos moradores, mas sim com os dos construtores civis e especuladores imobiliários, o que se tinha traduzido numa urbe crescendo sob a forma de mancha de óleo, uns ficaram em silêncio e outros encolheram os ombros. Agora, para impedir um equipamento que em nada afetará a atividade lojista, em decadência económica acelerada, pois não há comércio onde ninguém habita, todos se estavam a mobilizar com entusiasmo.

Este livreiro, filho de judeus entrados em Portugal, em plena II Guerra Mundial, fugidos ao NAZI / FASCISMO, graças à ação heroica de Aristides Sousa Mendes, mergulhado no meio da sua perplexidade só encontrou uma interrogação para dar vasão ao que lhe ia na alma: Que foi feito do mês de abril?     

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